Créditos: Diego Dacal – Flickr
Ana Luísa Vieira, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Na infância do cordelista e professor norte-rio-grandense Hailton Alves Ferreira, todos os sábados à tarde eram reservados para uma tradição familiar. Ao voltar da feira-livre com as compras, sua mãe, dona Josefa, professora primária, reunia os 11 filhos sentados em círculo, à sombra da mangueira do quintal, para ler uma nova história de cordel. Hailton, o mais novo dos irmãos, empolgava-se com aquele tipo de literatura, recheado de desenhos em preto e branco, as tradicionais xilogravuras, que preenchiam os pequenos cadernos coloridos.
Ainda menino, Hailton não abandonou o esconde-esconde, o pega-pega, o “tô no poço” (também conhecido como passa-anel). Certa vez, criou um curral de brinquedo a partir de frutas verdes espetadas com gravetos. E lhe bastavam um caderno e um lápis por perto para a rima vir fácil. O cordel, gênero literário popular, escrito geralmente em estrofes, o marcou tanto que se tornou sua profissão. Hailton trocou o sobrenome por Mangabeira, em alusão direta à comunidade rural da cidade de Macaíba (RN), onde nasceu e vive até hoje, aos 41 anos, dando aulas em uma escola municipal. Em sala de aula, faz questão de trabalhar com a literatura de cordel e o violão, outra herança – essa deixada pelo pai, seu Manoel, consertador de cordas do instrumento.
“Nós não podemos nos esquecer do que o grande educador Paulo Freire, hoje Patrono da Educação Brasileira, dizia: a leitura do mundo precede a leitura da palavra. É por isso que a influência da cultura local ficou tão marcada na minha vida e deve continuar na vida das crianças”, conta. Recitais, cordéis e versos, acredita ele, além de trabalhar a cultura regional, são facilitadores para o processo de alfabetização do aluno. “Não é só ler por ler, é ler para entender”, diz Mangabeira. Orgulhoso, relata que muitas mães já vieram lhe agradecer pelo fato de o trabalho com o cordel “ter desenrolado muito fácil” a leitura e a escrita na vida de seus filhos.
Repertório e influência multiculturais
A importância do brincar é assegurada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo 16: “meninos e meninas têm o direito de brincar, praticar esportes e divertir-se”.
De acordo com a educadora Adriana Friedmann, especialista nas temáticas da infância e do brincar, a cultura de cada região, contexto, comunidade ou local onde cada criança nasce, cresce e se educa é essencial para sua formação integral. “As brincadeiras e outras manifestações e expressões artísticas, sejam elas populares, tradicionais ou folclóricas, são, naturalmente, educadoras: de forma espontânea, trabalham o corpo, a musicalização, a palavra, a poesia, as habilidades manuais, bem como a socialização, os valores e emoções”, define.
Também coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Simbolismo, Infância e Desenvolvimento (Nepsid), Adriana explica que toda criança passa por processos de desenvolvimento universais, “mas o que aprendem a partir da influência familiar, comunitária e local irá tornar cada uma delas únicas”.
O brincar no Semiárido
Em uma pesquisa realizada pela especialista, intitulada “Rede de brincadeiras regionais do Brasil”, é possível navegar pelas diferentes formas de brincar em todos os estados brasileiros. “Gosto de falar no plural, em culturas populares, pois o repertório é bastante rico”, diz Adriana. Quando tratou do Semiárido, ressalta, o mais interessante foi encontrar/descobrir brincadeiras que atravessaram o século 20. “Nesta região do país, até os anos de 1980, o contato com a natureza exercia uma enorme influência nas brincadeiras, que ainda tinham pouca intervenção do mercado, do marketing e do consumo.”
A situação, segundo ela, mudou a partir da década de 1990, quando os brinquedos industrializados e, mais tarde, os tecnológicos ficaram acessíveis.“Mesmo assim, a influência multicultural é tão diversa, sobretudo em regiões rurais, ribeirinhas, indígenas e quilombolas, com comemorações e festas, que a cultura popular se perpetua mais do que nas grandes cidades”, explica. “Nestas áreas, têm ocorrido um resgate e uma valorização que divulga cada vez mais a importância das culturas populares e suas riquezas”.
Do Boi-Bumbá ao Lobisomem
No Ceará, para celebrar o mês do folclore, em agosto, o Projeto Compromisso Vivo, desenvolvido pelo Instituto da Infância (Ifan), em parceria com a Fundação Telefônica Vivo e apoio da Prefeitura Municipal de Acaraú (CE), criou uma série de ações culturais. Por meio delas, crianças aprenderam sobre lendas rurais e urbanas.
Este projeto relacionado ao folclore, executado pelo estagiário Lucas Andrade, de 24 anos, promoveu em Acaraú (cidade localizada a 238 km de Fortaleza, conhecida por ser a maior produtora de lagosta do Brasil), um encontro entre os dias 4 e 8 de agosto. “Falamos sobre lendas do Boto Cor de Rosa, da Mula sem Cabeça, do Saci-Pererê, do Boi-Bumbá, do Lobisomem, da mulher que vira porca, mostrando, sempre, como a manutenção dessas lendas é uma maneira de resgatar e respeitar a cultura local”, explica Marcilene Silva, assistente de coordenação de monitoramento e avaliação do Projeto Compromisso Vivo. “Nosso foco é trabalhar no enfrentamento ao trabalho infantil e acreditamos que as questões relacionadas à cultura local fazem um resgate de nossas raízes, aproximam as famílias, as comunidades e as crianças”, afirma.
Como resultado, cerca de 30 meninos e meninas, com idade de 9 a 12 anos, apresentaram poemas e desenhos e uma peça de teatro. Também fizeram até uma sessão de cinema com filmes de terror. “Foi bastante rico ver a interação de todos e o interesse que o tema gerou”, relata Marcilene.
Conexão Pernambuco-São Paulo
Nas metrópoles, também é possível encontrar na cultura popular e no folclore um modelo a ser seguido e preservado. A família de Felipe Romano, de 35 anos, é um exemplo. O músico e percussionista, nascido em Santos (litoral de SP), não tem ascendência nordestina, mas o batuque da alfaia (tambor usado no maracatu, no samba de roda e nas cirandas) o conquistou de tal maneira que o fez criar, em 2003, o grupo Maracatu Quiloa na cidade paulista.
“O maracatu é um folguedo (brincadeira) criado pelos escravos no Brasil. É uma tradição oral. Tanto as roupas quanto as loas (canções) são repassadas de pai para filho. É uma responsabilidade e um valor histórico muito grande. Creio ser uma manifestação que resiste pelo amor”, afirma Felipe, casado com Carol Real e pai da pequena Manu, de 7 anos – ambas integrantes do Quiloa, que realiza cortejos pela cidade à época do Carnaval, com mais de cem participantes. “Somos uma família paulista-pernambucana-batuqueira”, brinca.
Nos planos do grupo, que realiza oficinas e encontros culturais em Santos, há a ideia de fundar um espaço cultural voltado para a formação das crianças, como complemento escolar – para Felipe, as escolas ainda pecam, por vezes, em deixar de fora da grade curricular o folclore e a diversidade cultural do Brasil. “O maracatu, por exemplo, tem mais de 400 anos. O que seria de nós sem as nossas raízes históricas?”, questiona.
Silas Nogueira, doutor em Ciências da Comunicação e professor de Teorias da Cultura da Universidade de São Paulo (USP), complementa: “O desconhecimento ou o abandono dessas manifestações, formadas por saberes e conhecimentos da vida, significa o abandono da própria história. Esse processo afeta as identidades, os reconhecimentos da realidade social. Quando são perdidas as identidades e são ignorados os valores culturais próprios, abre-se um vazio, uma lacuna que, normalmente, é preenchida por outros valores, por outra cultura, por outros costumes e formas de vida.”
Dica para os educadores
Da mesma maneira que o cordelista Hailton Mangabeira mantém a cultura regional em suas aulas, Adriana Friedmann, também autora de vários livros na área educacional (entre eles, “Linguagens e culturas infantis” e “O desenvolvimento da criança através do brincar”), alerta para a importância de o professor acolher e pesquisar, a partir dos depoimentos das crianças, as origens familiares. “As próprias crianças podem entrevistar os pais para saber do que brincavam nas suas respectivas infâncias, que histórias ouviam, onde brincavam… Trazer os pais para uma ‘jornada lúdica’ pode ser uma das formas de estimular as crianças e suas famílias neste resgate”, acredita. A partir dessas informações, inúmeros conteúdos e pesquisas podem ser desenvolvidos.
Saiba mais!
No documentário Tarja Branca, que trata da importância da brincadeira na vida adulta, uma das entrevistadas, a educadora baiana Lydia Hortélio, de 81 anos, propõe uma reflexão: “A ciência pedagógica, cada vez mais sofisticada, veio para ensinar a gente a fazer vestibular. Ninguém nasceu para fazer vestibular, nascemos para ser gente, para nos expressarmos em plenitude e liberdade todos os talentos que cada ser humano tem”. Confira a página do filme no Facebook.