Na última segunda-feira (05/05), foi divulgado o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) pela ONG Ação Educativa e pela consultoria Conhecimento Social. A ação tem a parceria da Fundação Itaú e apoio da UNESCO, do Instituto Unibanco e da Fundação Roberto Marinho. Os resultados de 2024 mostraram que 29% dos brasileiros podem ser considerados analfabetos funcionais¹. Isso significa que, embora essa parcela da população seja capaz de ler, escrever e realizar cálculos simples, enfrenta dificuldades em áreas como interpretação de textos e raciocínio lógico, por exemplo.
Pela primeira vez em suas edições, a pesquisa mediu também o analfabetismo no contexto digital. Em um contexto em que a digitalização avança sobre diferentes dimensões do cotidiano – da escola ao trabalho – as competências digitais assumem um papel central na vida das pessoas para a inclusão na sociedade contemporânea e para o pleno exercício da cidadania.
Metodologia
A pesquisa foi realizada a partir de entrevistas domiciliares com 2.002 pessoas entre 15 e 64 anos de idade, residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regiões do país. As entrevistas ocorreram presencialmente, com amostragem estratificada por região e alocação proporcional à população brasileira em cada região. Os resultados têm intervalo de confiança estimado de 95% e margem de erro máxima estimada de 2,2 pontos percentuais, para mais ou para menos.
Como mencionado anteriormente, além dos domínios já considerados em edições anteriores – relativos ao letramento e numeramento dos entrevistados – atualização da matriz de habilidades contempladas pelo Inaf passou a incorporar competências digitais. Para aprofundar as habilidades específicas desse domínio, seus procedimentos e usos, foram analisadas ações necessárias para a realização de tarefas do cotidiano, organizadas em quatro subdomínios², listados abaixo:
- Uso das TIC: envolve as habilidades operacionais necessárias para uso de apps, softwares, ferramentas e recursos da/na internet.
- Trato com a informação: inclui habilidades de navegação – reconhecimento e manejo de hipertextos, ícones, recursos visuais, de busca, curadoria e análise crítica de conteúdo (confiabilidade, atualidade e fidedignidade, identificação de fake news, reconhecimento de conteúdos patrocinados, viés etc.).
- Interação, comunicação e colaboração: saber se comunicar adequadamente em diferentes ambientes digitais, publicar conteúdo em diferentes mídias, colaborar e participar de forma responsável e ética nas redes e ambientes digitais, reconhecer discurso de ódio e estabelecer diferença entre liberdade de expressão e discurso de ódio, bullying e outros conteúdos de natureza ofensiva, usar adequadamente ferramentas de trabalho colaborativo.
- Segurança digital: considera as habilidades relacionadas aos aspectos de proteção, controles de uso, configurações e segurança de dispositivos pessoais, redes e dados.
Assim, para mensurar o nível de apropriação digital dos participantes da pesquisa, foram propostas três atividades aos entrevistados. Estas simulam procedimentos básicos e operacionais no ambiente digital, permitindo observar se os participantes conseguem completar tarefas do cotidiano digital com êxito.

As três tarefas eram respondidas em um celular e tinham, cada uma, 14 atividades do mundo digital. Os níveis de habilidades – baixo, médio e alto – foram definidos a partir da quantidade de acertos nessas atividades.

Resultados do contexto digital
Os primeiros resultados mostram que, a cada 4 respondentes, 1 era classificado com um patamar baixo de habilidades digitais, isto é, não conseguia completar ao menos 1/3 dos testes propostos.

Outros recortes dos dados apontam para diversas desigualdades com relação ao letramento digital. As tabelas apresentadas a seguir mostram que o percentual de indivíduos com níveis baixos nos testes de desempenho é consideravelmente maior nos grupos com menor escolaridade, em faixas etárias mais avançadas e entre negros.




É interessante observar que a pesquisa também traz recortes relacionados aos patamares de alfabetização estudados. Como indicado na tabela abaixo, 60% dos analfabetos funcionais só conseguiram realizar tarefas muito limitadas no ambiente digital.

Os dados apresentados evidenciam uma série de desigualdades no que diz respeito ao letramento digital. Esse resultado é preocupante pois mostra que, embora a tecnologia tenha um enorme potencial de aproximação – encurtando distâncias, ampliando o acesso à informação e criando possibilidades de participação social e produtiva – ela só pode concretizar tal potencial quando há condições equitativas sobre seu acesso e uso. Em um cenário de desigualdade estrutural, a exclusão digital tende a reproduzir e até ampliar assimetrias já existentes, aprofundando barreiras ao aprendizado, ao mundo do trabalho e ao exercício da cidadania.
Além disso, a correlação observada entre os níveis de escolaridade e de letramento digital, evidenciada pelo Inaf, mostra que essas dimensões não podem ser tratadas separadamente. O fato de que a maior concentração de pessoas com competências digitais muito limitadas está no grupo dos analfabetos revela que o acesso ao mundo digital está intrinsecamente ligado às oportunidades educacionais. É fato que o desenvolvimento dessas competências não substitui o aprendizado tradicional, mas pode – e deve – ser um aliado à educação, especialmente quando incorporado de forma intencional à prática pedagógica.
Nesse sentido, destaca-se a importância do ensino da matemática e do pensamento computacional, previsto pela BNCC: além de essenciais para combater o analfabetismo numérico, eles desenvolvem habilidades críticas, lógicas e analíticas que são fundamentais para se navegar no mundo digital. Dessa forma, a integração dessas competências ao currículo de forma articulada é essencial para que os estudantes desenvolvam tanto a capacidade de realizar tarefas básicas do dia a dia – como efetivamente compreender o que leem – quanto as habilidades necessárias para com os desafios de um mundo cada vez mais mediado pela tecnologia.
É animador observar que, pela primeira vez, o Inaf incorporou o contexto digital em sua metodologia. Trata-se de um marco importante no reconhecimento de que o letramento digital é parte inseparável da alfabetização plena. Contudo, é fundamental que essa agenda ganhe continuidade e seja ampliada, de modo que a dimensão de competências digitais possa ser incorporada de forma sistemática a outras avaliações, especialmente naquelas voltadas à educação básica.
Vale ressaltar que a avaliação dos indicadores é realizada apenas com indivíduos acima dos 15 anos. É igualmente importante avançar no desenvolvimento de instrumentos que também permitam acompanhar o letramento digital daqueles abaixo dessa faixa etária. Monitorar a evolução das competências digitais desde a educação básica é crucial para que se tenha mais “tempo de ação” sobre a formação dos estudantes, de modo a orientar políticas de formação e inclusão digital, com base em evidências, de forma preventiva e mais eficaz.
Por fim, cumpre mencionar também que, embora já existam iniciativas relevantes para medir as competências digitais dos professores³, é fundamental que tais avaliações se fortaleçam ainda mais e dialoguem com o desenvolvimento e monitoramento das competências digitais dos estudantes.
Ao se celebrar o avanço do Inaf com a incorporação do contexto digital, reafirma-se a necessidade de políticas públicas que sustentem uma visão integrada entre avaliações, de modo a garantir que o desenvolvimento de competências digitais seja promovido de forma articulada, contínua e com equidade, envolvendo tanto os estudantes quanto aqueles que ensinam.
¹ Segundo o Inaf, uma pessoa é considera analfabeta funcional quando, mesmo sabendo ler e escrever palavras simples ou assinar o nome, não é capaz de compreender, interpretar ou utilizar textos e informações de maneira eficaz em seu dia a dia.
² Disponível em: https://alfabetismofuncional.org.br/wp-content/uploads/2025/05/artigo-pressupostos-para-indicador-de-alfabetismo-funcional-2023.pdf
³ Em 2024, o MEC lançou uma ferramenta para auxiliar os professores a analisarem seus saberes digitais e buscarem caminhos para uma prática pedagógica mais intencional e alinhada às demandas contemporâneas. O Autodiagnóstico está disponível no Ambiente Virtual de Aprendizagem do Ministério da Educação (Avamec). Os resultados podem ser consultados em: https://avamec.mec.gov.br/#/autodiagnostico/resultados. Além disso, o CIEB também dispõe de uma ferramenta online e gratuita que faz um diagnóstico do nível de adoção de tecnologia educacional por professores e escolas de redes públicas. Essa última está disponível em: https://guiaedutec.com.br/.