Crédito: Vielada Cultural/Divulgação
Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Se tudo tem alma, a das ruas é encantadora. O escritor João do Rio já dizia, no seu livro quase homônimo à primeira frase, A Alma Encantadora das Ruas: “A rua é a eterna imagem da ingenuidade; para ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é no encanto da vida renovada”. A rua, tão ou mais larga que uma escola, está sempre aberta para receber quem quer nela sentar, brincar e aprender.
As ruas da comunidade do Morumbizinho serpenteiam ao longo da Rodovia Raposo Tavares, em São Paulo. Elas são estreitas, e às vezes desembocam como rios em becos, escadarias ou ladeiras. As crianças as ocupam, sempre suas legítimas donas, no caminho para a escola ou jogando bola.
O poeta Giovani Baffô já foi uma delas e teve dificuldades para encontrar o lírico e o lúdico dentro de sua comunidade. Como qualquer bairro de periferia, o Jardim Boa Vista pressupõe deslocamentos: se o morador quer ir a um show, tem de atravessar pontes; se quer assistir um filme, deve pegar ônibus; se tem de dizer onde mora, diz que é no Butantã e não em uma das favelas da cidade.
Foi domando, conhecendo e trilhando as ruas, sem medo de suas mordidas e belezas, que Giovani teve a ideia de criar o coletivo Vie La En Close, misturando a sagacidade poética de Paulo Leminski com a música de Edith Piaf. É qualidade da rua, fazer todo mundo brincar junto: “A ideia é levar a arte para a comunidade. Tentar colocar o bairro na geografia artística da cidade e fazer isso com qualidade”, explica o poeta.
A periferia como centro cultural
O que antes eram encontros esporádicos de saraus, varais de poesia e música, que geralmente aconteciam nas terças e quartas-feiras, culminaram na criação da Vielada Cultural. O festival, que acontece quando o dinheiro permite e sempre com a colaboração de pessoas de dentro e fora da comunidade, transforma a periferia em um centro cultural e inverte o fluxo comum das cidades. “É um movimento inverso e lindo quando as pessoas saem do centro e dos lugares mais privilegiados da cidade para irem até a periferia atrás de eventos culturais”, conta Mafuane Oliveira, também conhecida como Mafu, contadora de história da Cia Chaveiroeiro e assídua participante das Vieladas.
Ana Carolina Laet, pedagoga e também integrante do coletivo, não demorou a perceber: ainda que o evento fosse aberto para todos, eram os pequenos e pequenas que mais se comoviam com os tecidos que coloriam as ruas ou cliques dos fotógrafos. “Fiquei impressionada com a energia deles, de perceber como é a criança quando está livre e na rua. Quis continuar fazendo as coisas com a molecada, e então comecei o Vielinha”.
O Vielinha acontece paralelamente ao Sarau da VieLa, no terceiro domingo do mês. As atividades montadas para as crianças são também por elas protagonizadas, que querem participar de tudo e botar a mão na massa. Se um fotógrafo vai trabalhar, já estão com as mãos nas lentes, no desejo de registrar tudo. Se um tecido é espalhado no chão, vão rolar nele como se fosse grama. E se for para sentar e ouvir umas histórias, vão fazer dessa roda um pequeno Carnaval.
Oferecer cultura faz as crianças ficarem na rua por outros motivos além de ser seu hábitat natural. “Na periferia, o quintal é a rua e não existe o medo. Temos que levar jogos, circos, grafites, porque as crianças já estão lá, e se deixar, viram a noite nas calçadas”, diz Giovani Baffô.
Pedagogia da Vida Cotidiana
Mas o que essas ruas tomadas ensinam sobre as crianças, ou o que essas crianças aprendem estando na rua? Para o educador espanhol Jaume Martínez Bonafé, “o currículo está na rua”. Quando as crianças se apropriam dos espaços urbanos, em especial a rua onde se desenha a amarelinha ou onde se quer mandar ladrilhar, ajudam a torná-la cada vez mais da parte de um bairro e de uma cidade educadora. Como Ana afirma, a Vielinha é uma experiência de convívio, que amplia as percepções do mundo e faz as crianças aprenderem e imaginarem novas formas de vida.
“Viver na comunidade é muito duro e enrijece, e a criança pode perder a referência de sonho. Mas quando os meninos e meninas veem os fotógrafos chegarem, eles falam, ‘nossa, quero trabalhar com vídeo, como faz?’. Quando assistem a apresentação de um MC, perguntam, ‘como eu aprendo essa profissão?’. Não estamos dando nada, tudo é das pessoas e nasce de dentro delas, mas ajudamos o despertar”, explica Mafuane.
A contadora Mafu e os pais da pequena Mafalda, Ana e Giovani | Crédito: Arquivo pessoal
Giovani também ressalta que, trazendo esses espaços de cultura e convivência para dentro da periferia, quem nasce nela não sente vergonha de seu bairro. A autoestima cresce ao ver que eles fazem parte de um lugar que é roteiro cultural e que ferve com manifestações artísticas. “Levamos grafiteiros que intervém nos centros. Quando os moleques veem os grafites comuns, eles acreditam que seu bairro faz parte da cidade também”.
E a cultura brota de dentro do bairro quando as pessoas se engajam, quando um poeta sai de sua casa na viela e pega o microfone, quando alguém se dispõe a cozinhar uma panelada para alimentar os artistas. Ana acredita que a importância da ação cultural vem justamente desse movimento. “Eu não escolho uma ação, levo lá e falo, ‘olha, isso daqui é cultura’. Estamos vivendo esse movimento juntos!”.
No fim da entrevista, antes dos pais Giovani e Ana me convidarem para um café gostoso na companhia de sua bebê Mafalda, da contadora Mafu e de um cachorro cabeçudo chamado Poema, pergunto o que eles desejam para Vielada Cultural e para as crianças que vivem no Jardim Boa Vista. E o poeta responde, sem delongas: quer mais é passar o bastão. “Penso em continuar até chegar um ponto em que não dependa mais da gente. Essa gurizada que está com 12, 13 anos e está sendo atendida pelo projeto, devem assumir e continuar tocando”. Que eles continuem a perpetuar o encanto que se aprende nas ruas.