Crédito: Nikolaev Mikhail/Shutterstock
Por Christine Castilho Fontelles*
(Texto originalmente publicado no
Centro de Referências em Educação Integral)
O coração é o primeiro órgão a se desenvolver no embrião. Entre todos os sentidos que vamos experimentar, parece que o som é aquele que se destaca na origem. Vários são os sons que povoam a vida do bebê no ventre da mãe. A vida que trafega pelas artérias no corpo materno embala seu crescimento. Entre eles, o som da voz da mãe, o primeiro contato do bebê com a linguagem tal qual a conhecemos.
A genética não é destino. A construção da vida é resultado de um processo extremamente cuidadoso, repleto de interações e leva tempo pra maturar. E demanda cuidado. Afeto. Afeto no sentido de afetar e ser afetado. Cantar e contar histórias para o bebê é uma dessas interações que constitui um precioso legado ao qual ele tem direito desde sempre e perante o qual a família é desde sempre responsável. É alimento que nutre sua constituição como ser humano e alicerce para o sujeito e cidadão que se tornará. Oferecer linguagem é garantir desde sempre sua inclusão num mundo povoado por palavras cada vez mais sofisticadas. Um passaporte pra qualquer lugar do mundo.
Porque nos comunicamos pela palavra falando, lendo, escrevendo, ler para a criança desde sempre é afetar profundamente a forma como esta criança vai interagir com o mundo. Saímos do ventre da mãe para ingressar no ventre da palavra. Alimentado pela sonoridade do texto literário ofertado pela mãe, a criança é preparada para sua primeira aventura numa espécie de internet ainda mais virtual, numa rede onde navega pelo pensamento, pela imaginação, por um universo de sentidos e sensações que aprenderá a reconhecer e nomear pouco a pouco. E fazer escolhas. Escolhas que pouco a pouco confirmam e consolidam o ser humano que será enquanto for crescendo.
O contato com as histórias de ficção, primeiro virtual e sonoro, adquire contornos e cores quando nasce e permanece imerso numa rotina de leituras cotidianas com livros – e tablets. Não, ela ainda não entende o que ouve. Mas sabe que aquilo que ouve, o que lhe está sendo revelado, faz parte intrínseca do mundo ao qual veio, igualmente povoado de sons, só que diferentes daqueles do ventre materno. Com o tempo descobre que sons brotam de imagens, garatujas, que mais adiante representará em sua incursão pela alfabetização, mais preparada e confiante se seu mundo tiver sido sempre povoado por histórias transportadas por palavras.
Nessa “internet” ofertada pela leitura em voz alta de textos literários encontrará representações – sonhos, medos, alegrias, tristezas, magia, superações – que povoam a aventura humana na Terra desde os primórdios e saberá que para além de pertencer a este ou aquele lugar, a esta ou aquela classe econômica e social, pertence à expressão humana da vida, que é parte dela e da qual ela faz parte.
Reconhecendo o valor dessa oferta cotidiana realizada por sua família e justamente por estar tão permanente em seu cotidiano como qualquer outra oferta – de alimentos, brincadeiras, medicações, consultas médicas, teatro, cinema, festas, banhos… -, terá mais condições de incluir a leitura com naturalidade entre as diversas interações que a acompanharão por toda a sua vida. O que for semeado a partir de escolhas cuidadosas para cada etapa da sua vida pela sua família, fará pleno sentido quando mais adiante for exigido dele um esforço cada vez maior em práticas leitoras diversificadas. Tudo a seu tempo. Assim é a pedagogia de todas as coisas.
E entre o que descobrirá nas páginas da literatura estão as aventuras e desventuras, os tempos e lugares inimagináveis e talvez impossíveis de serem experimentados ao vivo, a capacidade de sonhar e ir além e, como disse alguém, para muito mais além do que a presença de monstros ou dragões assustadores, é a convicção de que estes poderão ser superados. Tudo, absolutamente, no ritmo da pulsão dos corações humanos. E o mundo será muito mais do que linhas delimitadas de fronteiras.
Educar desde sempre para a leitura, pelas artérias da literatura, é partilhar habilidade com afeto. É dar sentido à educação desde sempre, para que desenvolve habilidades para viver e sonhar o mundo que tanto queremos: íntegro e preservado para todos.
* Christine Castilho Fontelles é cientista social pela PUC-SP, possui MBA em Marketing pela FIA/FEA-USP, diretora de educação e cultura do Instituto Ecofuturo, conselheira da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e do Movimento por um Brasil Literário.