Crédito: Killie Walls/Shutterstock
Entender o comportamento das crianças na internet é importantíssimo, pois as mensagens da mídia têm grande peso na formação e elaboração dos referenciais de mundo de uma criança, um público que não tem ainda sua capacidade de resistência aos apelos externos completamente desenvolvida.
Um dos pontos mais importantes nesse debate é aumento do uso da internet como meio de consumo e produção de conteúdo audiovisual por crianças. Segundo dados de pesquisa realizada com a intenção de mapear o consumo e a produção de vídeos por crianças no Brasil, em 2014 a internet passou a atingir 50% dos lares brasileiros, chegando a 32,3 milhões de domicílios. Dentre estes usuários, muitos são crianças, sendo que 75% da população de 10-15 anos já utiliza a rede, número que sobre para 83% na faixa de 16-24 anos.
Da variada oferta de serviços e conteúdo da internet, as redes sociais parecem atrair especialmente o interesse dos mais jovens, veja-se que 43% das crianças entre 9 e 10 anos que utilizam a internet tem conta em redes sociais, índice que cresce conforme a idade do corte, até atingir 95% na faixa de 15-17 anos. Ainda segundo a pesquisa, além de usar as redes sociais, as crianças têm o hábito de assistir vídeos na internet, sendo o Youtube a principal plataforma utilizada. A participação das crianças neste mercado é crescente, tanto é que dos 100 canais mais acessados do Youtube, 36 são de conteúdo direcionado a crianças (de 0 a 12 anos) ou por elas consumido e o Brasil é o 2º país em consumo de vídeos na plataforma.
Outro ponto importante é a baixa representatividade do conteúdo educacional, dentre os 110 canais infantis com maior visibilidade, apenas um é de conteúdo educacional, se a análise for feita com base no número de visualizações leva à conclusão de que o conteúdo educativo corresponde a pouco mais de 3% das visualizações dos vídeos desses canais.
Quando recortado o comportamento das crianças com idade entre 0 e 2 anos verificou-se um dado surpreendente, elas assistem a muitos vídeos de unboxing (termo em inglês para o ato de tirar um produto da caixa), formato em que um produto novo é retirado da embalagem e demonstrado ao espectador. Dos dez canais mais assistido por crianças de 0 a 2 anos, quatro praticam unboxing.
Tal prática merece especial atenção, pois é uma nova forma de fazer publicidade, nesses vídeos, crianças (ou mãos adultas) desembrulham objetos, brinquedos em especial, com uma narração. A forma de demonstrar o objeto incita nas crianças o desejo de consumir, sem que elas tenham a noção de que se trata de uma peça publicitária, produzida para este fim, ou seja, com o intuito de persuadir a criança a querer aquele produto.
Anunciar para crianças é um desrespeito à sua peculiar condição de desenvolvimento, em especial nesses casos em crianças com menos de 2 anos são persuadidas por empresas a consumir seus produtos. Especialmente nesses casos em que os anunciantes agem de forma a disfarçar a publicidade, fazendo-a parecer um conteúdo produzido com a finalidade de entreter o espectador.
Além de ser antiético, o direcionamento da publicidade a crianças é vedado pela legislação.
Em primeiro lugar, ao prejudicar o desenvolvimento das crianças, a publicidade infantil fere o art. 227 da Constituição Federal, que estabelece a prioridade absoluta dos direitos das crianças:
“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Em segundo lugar, por ser uma forma de publicidade direcionada à criança, prática definida como abusiva, portanto ilícita, pelo art. 37, caput do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Neste aspecto, é importante lembrar que a publicidade abusiva é aquela que atenta contra valores sociais, como exemplifica, de forma não taxativa, o § 2º do referido artigo:
“§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.”
Outro dispositivo violado é o art. 36 do CDC que impõe que a publicidade deve ser veiculada de forma a permitir a fácil e imediata identificação de sua natureza, o que não ocorre nos vídeos de unboxing, que se apresentam como uma demonstração dos produtos ou congênere, camuflando seu caráter comercial.
Complementarmente, a Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) regula a matéria para considerar abusiva “a prática do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”.
Vale esclarecer que segundo a Resolução 163, “comunicação mercadológica” é toda e qualquer atividade de comunicação comercial, inclusive publicidade, destinada à divulgação de produtos, serviços, marcas e empresas realizada, dentre outros meios, em espaços públicos, páginas de internet, canais televisivos, em qualquer horário.
Logo, a ilegalidade da veiculação deste conteúdo para crianças é patente, pois os vídeos além de serem direcionados ao público infantil, não são claros quanto ao seu caráter publicitário.
Assim, com vistas a combater este tipo de abuso, o Projeto Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, disponibiliza conteúdo apto a auxiliar na elaboração de notificações e denúncias de publicidade direcionada à criança.
Guilherme Perisse, advogado do Projeto Prioridade Absoluta, do Instituto Alana.
CORRÊA, Luciana. Geração Youtube: Um mapeamento sobre o consumo e a produção de vídeos por crianças. Disponível em: http://pesquisasmedialab.espm.br/criancas-e-tecnologia/
Idem