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Crédito: Marcia Zoet/Museu do Futebol
Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Ela se ajoelha para amarrar as chuteiras e, enquanto dá um nó no cadarço, sobe um cheiro de grama fresca e amassada. Prende o cabelo despretensiosamente, ajeita o calção e a blusa e começa uma série de alongamentos; o suor escorre porque as noites para as esportistas são tão impiedosas quanto um sol matutino. Vão chegando mais e mais meninas, com suas mochilas nas costas. Uma delas traz a bola em mãos. Quando quica, o jogo começa. A bola é a gazela e as jogadoras são como guepardos, ágeis e musculosas, percorrendo o campo verde como se fosse uma savana.

Elas estão em todos os lugares. A cena acima vem de um treino em São Paulo. Nas comunidades quilombolas de Pernambuco, onde o chão é de açude seco, as jogadoras descalças ainda estão atreladas à permissão dos rapazes, que só as deixam treinar depois da partida deles. Em Paraty, no Rio de Janeiro, quando as mulheres da aldeia Tava-Mirim entram em campo, é pena na cabeça, miçanga no pescoço e bola nos pés; o futebol é um esporte popular em comunidades indígenas.

Elas também estão nos pódios. O Brasil é tricampeão nos Jogos Pan-Americanos. Quando Marta recebeu pela quinta vez o título de melhor jogadora do mundo, a notícia não se alardeou o suficiente. É preciso falar de Marta, de Cristiane, de Miraildes Maciel Mota, a Formiga. É preciso contar a história inspiradora do São José, o melhor time de futebol feminino do país.

É preciso falar das mulheres no futebol.
Como se fossem fantasmas boleiras, são ignoradas pelos grandes e pequenos clubes, pela imprensa esportiva e pelos grandes empresários. Sobre elas há poucos dados, poucas referências, um acervo diminuto. Ainda que tenham jogado futebol desde seus primórdios, a história da mulher e do futebol é marcada por lacunas forçadas, proibições legislativas e falta de representatividade.
Afinal, se uma menina em seus 8 anos ama jogar bola, onde estão os álbuns de figurinhas, as camisetas autografadas, os jogos televisionados de futebol feminino para que ela tenha onde se espelhar?

Crédito: Monica Zarattini/Museu do Futebol

A história do futebol feminino é também a história da luta contra o machismo
Daniela Alfonsi sempre se considerou uma especialista em futebol. Ela gosta e pesquisa o tema, e trabalha com ele há um bom tempo – é diretora técnica do Museu do Futebol, um dos maiores centros de acervo da história do esporte no Brasil. Entre flâmulas de ídolos como Garrincha e Ronaldo, gols históricos e documentações infinitas sobre futebol masculino, figuravam poucas peças da história do feminino. Quando confrontados com o desafio de criar uma exposição sobre a modalidade, Daniela percebeu o quão pouco sabiam dessa trajetória.

Ao dar início à pesquisa e à coleta de material, notaram que o museu, ainda que inintencionalmente, continuava a representar um papel bastante comum quando se fala sobre futebol feminino: o da invisibilidade. Escarafunchando arquivos e acervos, jornais e artigos, as pesquisadoras tinham dificuldade em encontrar referências em hemerotecas esportivas. Decidiram abrir o leque da busca. Começaram a pipocar notícias em acervos policiais, contando como denúncias batidas impediam que o esporte feminino acontecesse. Não só a história do futebol feminino era escassa; era também proibitiva.

“A história das mulheres no futebol é tão antiga quanto à dos homens, mas a delas foi legada à marginalidade. As encontramos em revistas e selos antigos, não como torcedoras, mas como jogadoras”, relata Daniela. Há registros de que os primeiros jogos teriam acontecido na Inglaterra, em 1898. No Brasil, os registros datam entre 1908 e 1909, mas o primeiro jogo oficial foi uma partida entre mulheres dos bairros Tremembé e Cantareira, em São Paulo.

 

Crédito: Ana Araújo/Museu do Futebol

Desde seu princípio, a mulher no futebol tem forte correlação com o espaço da mulher dentro dos lugares públicos e sua imagem – que não podia deixar de ser feminina e prendada. No artigo Mulheres e Futebol no Brasil: Entre sombras e visibilidade, a pesquisadora Silvana Goellner aborda esse ocultamento: “A habilidade esportiva dificilmente se compatibiliza com a subordinação feminina tradicional da sociedade patriarcal; de fato, o esporte oferecia a possibilidade de tornar igualitárias as relações entre os sexos. O esporte, ao minimizar as diferenças socialmente construídas entre os sexos, revelava o caráter tênue das bases biológicas de tais diferenças; portanto, constituía uma ameaça séria ao mito da fragilidade feminina”.

Tanto que, relegado aos lugares de marginalidade, o futebol feminino ganhou ares pitorescos, sendo praticado em lonas circenses e motivos de batidas policiais. A proibição oficial aconteceu na década de 1940, com o decreto-lei 3.199, que não permitia que mulheres praticassem esportes que iam contra sua “natureza”. A proibição continuou oficialmente até 1979, quando as equipes tornaram a se estruturar. Em 1988, a primeira seleção feminina foi convocada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Ao reunir esse acervo espaçado e repleto de lacunas, Daniela concluiu que qualquer exposição de caráter temporário perpetuaria o ocultamento de uma historia tão rica quanto à masculina. A exposição Visibilidade para o Futebol Feminino foi o pontapé inicial; mas o ganho acontece quando esse acervo organizado se mistura ao já existente, deixando sua marca indelével na história do futebol não só feminino, mas brasileiro, inspirando meninas e criando pontos de referência. “O museu tem papel de educação estética e imagética, então é muito importante que as crianças venham aqui e vejam que tem mulher no futebol em vários papeis”, afirma a pesquisadora.

Crédito: Eliaria Andrade/Museu do Futebol

Sem transmissão, sem cobertura, sem representatividade
A são-paulina Roberta Ramos – ou Nina como todos a conhecem – cresceu acompanhando o pai e o irmão mais velho em jogos de várzea e em estádios. Como outras meninas que gostam de jogar futebol, ela tinha como exemplos os homens em suas impávidas camisas tricolores, e sua predominância tanto nos campos quanto nas arquibancadas. E também como muitas outras garotas, quando entrou na adolescência, ela não teve nenhum incentivo para jogar. “Você acaba deixando o esporte de lado, porque ninguém te encoraja. O professor de educação física passa a bola para o moleque e a menina fica sentada, sem poder jogar.”

Nina não deixou de amar o futebol, e nem de escrever sobre ele. Ela é fundadora do site Dibradoras, junto com Júlia Vergueiro, Angélica Souza, Nayara Perone e Renata Mendonça. Embora tenha nascido inicialmente para promover eventos que levassem garotas para assistir jogos, Nina percebeu que era necessário criar um espaço digital de posicionamento político sobre o futebol feminino, um canal de cobertura crítica que não só falasse sobre o esporte, mas falasse também sobre os motivos de ele ser pouco abordado e tão atrelado a estereótipos. O Dibradoras cumpre esse papel em podcasts e em entrevistas, sempre valorizando a produção feminina no futebol e em outros esportes, seja como jogadora, técnica ou articuladora.

Crédito: Nair Benedicto/Museu do Futebol

Mas fora do Dibradoras e outros canais como o Planeta Futebol Feminino, é só apertar o botão do controle remoto, ou folhear revistas esportivas, para se decepcionar. Quantas vezes um campeonato feminino é transmitido? Quando há uma página dupla para divulgar a escalação de um time brasileiro? “É um círculo vicioso: os clubes falam que não podem investir porque não têm patrocínio, o patrocínio não se coloca na camisa porque não sabe onde vai ser exibido, a televisão não exibe porque diz que ninguém assiste, então um joga a culpa no outro e vai se retroalimentando”, explica Nina.

Além de não exibir o futebol, quando existe a cobertura, ela está atrelada a estereótipos comuns, reforçados pelo fato de que os comentaristas em sua maioria são homens – ainda que não faltem jogadoras com muita experiência de campo para comentar. No estudo O Futebol Feminino e o Discurso Televiso, de Doiara Silva dos Santos e Ana Gabriela Alves Mendes, são apresentados enxertos machistas de comentaristas durante partidas.

Em um jogo entre Santos e Enforma, o narrador Osmar de Oliveira comenta sobre a forma física do time boliviano: “Aliás, todo time aí está precisando de um regime”. Em outro trecho, o comentarista Luciano do Valle pede que a comentarista Fabiola Andrade opine sobre os atributos físicos das jogadoras bolivianas: “O time da Bolívia é um time de bonitas? É um time de cabelo arrumado? Elas são vaidosas?”.

Crédito: Ana Carolina Fernandes/Museu do Futebol

O Dibradoras passa por dificuldades de cobertura que não existiriam se seu tema fosse o futebol masculino. Nina fala da árdua tarefa que é conseguir controles de times ou imagens E vídeos para ilustrar as matérias. “Às vezes queremos fazer um texto sobre quantos gols a Cristiane marcou. Mas não existe um controle, só a Cristiane consegue falar – se ela esqueceu um ou dois, são gols perdidos e esquecidos. Existem apenas duas fontes: ou pessoas que acompanham desde sempre ou o próprio atleta”.

A não cobertura, ou a cobertura sensacionalista do futebol feminino, tem consequência graves para a manutenção do esporte. O patrocínio, necessário para que os times se mantenham ativos e também para criar equipes de base desde a tenra infância, tem efeitos efêmeros. Clubes grandes, como São Paulo e Santos, não investem ou, se investiam, não tem mais interesse na formação de base. As diferenças de salário também são gritantes. Enquanto a remuneração para os homens pode alcançar cifras milionárias, o salário médio das jogadoras varia de R$ 320 até R$ 2 mil.

Ante a pergunta do que uma menina deve fazer se quiser jogar futebol profissionalmente, Nina prospecta um cenário pouco otimista e de escassas escolhas. “Você provavelmente vai jogar na escola, junto com o time masculino. Na adolescência, vai ou para um clube de interior ou para centros olímpicos, onde tentará a sorte. Mas em geral, não tem muito para onde ir.” Deixar o país e tentar carreira em nações com times femininos mais consolidados, como Estados Unidos e Japão, também é uma opção; mas é uma opção triste. No país de Marta, Formiga e Kátia Cilene, escoam-se as meninas que poderiam ser modelos para as próximas gerações.

 

Crédito: Ana Araújo/Museu do Futebol

O único jeito de jogar é continuar jogando
Das quatro quadras do playball localizado na Vila Leopoldina, em São Paulo, apenas uma estava ocupada por mulheres. Era o treino para iniciantes do Pelado Real, uma empresa que trabalha exclusivamente com futebol feminino. Teve gol, teve suor pingando da franja, teve menina caindo e levantando. Um típico jogo de quinta-feira, que se acaba em muitas risadas, ligeiros roxos na pele e a promessa de uma cerveja depois do jogo.

Elas se juntam em uma roda no fim da partida, transluzindo ante a luz fria das lâmpadas fosforescentes. Marina é muito nova, acabou de terminar o seu curso de faculdade. Isabella brilha os olhos azuis quando diz que nasceu sob o signo do futebol – o trabalho de parto de sua mãe aconteceu no meio de uma eliminatória da seleção brasileira.

Várias jogam futebol desde pequenas. Uma delas usava as chuteiras do irmão, colocando meias para encher o espaço no sapato gigantesco. Outras, como Raquel, são as únicas da família que gostam de jogar. Transpassando as grades, as meninas do time avançado já estão se alongando, mantendo a bola no ar com suas quicadas experientes de joelho.

Crédito: Luludi Melo/Museu do Futebol

Para Bibi Martins, criadora do Pelado Real, ir para a quadra jogar futebol significa uma ausência de pensamento. “Quando eu entro, acontece uma substituição de tudo em minha vida pela alegria de estar em campo. Esqueço tudo, é quase uma meditação.” Desde 2011, ela largou uma carreira em administração para se dedicar ao time Pelado Real junto com a sócia Júlia Vergueiro. Hoje, ela tira seu sustento de seus maiores amores: jogar futebol e ensinar mulheres das mais variedades a também abraçar o esporte.

“É muito comum que meninas se interessem por futebol desde pequenas, mas por orientação dos pais, escutem que devem jogar handball ou vôlei, que futebol não é coisa para menina. Isso vem de uma falta de exemplos na mídia e de campinhos no Brasil. Lido com muitas mulheres que ouviram esse discurso na infância, e agora quando adultas, tem a oportunidade de ver e jogar esse esporte amado”, conta Bibi. As aulas ministradas para as iniciantes começam com os fundamentos do jogo, e Bibi garante que, depois de três meses, elas estão batendo muita bola.

Dividir a quadra num ambiente frequentado por muitos homens tem seus percalços, e durante as partidas, por vezes Bibi e outras jogadoras têm de interceder e pedir para que eles parem com comentários machistas ou gozações.

Crédito: Nair Benedicto/Museu do Futebol

“Muitas pessoas não sabem, mas as meninas não gostam de jogar campeonato com nome no uniforme porque é motivo para que os caras possam fazer chacota chamando-as pelo nome ou assobiando. Odiamos esse tipo de interação e não ficamos quietas.” Mas ela também argumenta que a mentalidade vem mudando, e que esses ataques não são mais tão frequentes.

Marina, uma das jogadoras mais novas, e que enfrentou machismo dentro de casa (porque o pai se recusava a apoiar sua decisão de praticar boxe e futebol), também já teve de se defender. Ela conta que, uma vez, tendo jogado em um dia muito quente, ela e outras jogadoras estavam apenas de top, e ouviram comentários sexistas a todo tempo. A reação dos responsáveis pelo lugar também foi machista: o juiz pediu que elas evitassem usar esse tipo de roupa. “Fiquei desconcertada: quer dizer então que eu tenho que me reprimir e aceitar a sociedade, e não achar que ela está errada?”, desabafou.

Crédito: Ana Carolina Fernandes/Museu do Futebol

Entretanto a bola continuar a rolar, com mais garra e sangue nos olhos, pelos pés de meninas no Pelado Real e em todo o Brasil. Bibi se orgulha muito de ter realizado, junto com a equipe do Juventus, um treinamento só para crianças e adolescentes. O 1º Juventus International Camp Feminino reuniu mais de 50 meninas, que receberam aulas tanto das professoras do Pelado quanto de treinadores do time italiano. “Foi muito bonito de ver!”. Ela ainda se emociona quando fala.

Sem patrocínio, sem quadras, sem espaços, elas correm. Nada as fará parar, porque nada nunca as fez, nem quando foram proibidas, quando tiveram que jogar sob a lona abafada dos circos, quando suas conquistas foram varridas para debaixo dos tapetes de uma mídia que ainda insiste em determinar qual o espaço que a mulher deve ocupar. Daniela continuará juntando um rico acervo, Nina vai a escrever e ir aos estádios, Bibi irá jogar. Porque o único jeito de rasgar o véu da invisibilidade feminina é com belos e doidos chutes.

 

Crédito: Evelyn Ruman/Museu do Futebol
*Todas as imagens que ilustram essa matéria foram gentilmente cedidas pelo Museu do Futebol e fazem parte da exposição As Donas da Bola, que fica em cartaz até o dia 3 de abril, com 42 imagens de diversos jogos femininos que acontecem pelo Brasil. As fotógrafas que participam da exposição são: Ana Araújo, Ana Carolina Fernandes, Bel Pedrosa, Eliária Andrade, Evelyn Ruman, Luciana Whitaker, Luludi Melo, Marcia Zoet, Marlene Bergamo, Mônica Zarattini e Nair Benedicto.

**Nossos agradecimentos para:
– Daniela Alfonsi, diretora do Museu do Futebol, pelo acervo e colaboração;
– Equipe do Dibradoras, pelo ativismo e cobertura do site;
– Equipe de jogadoras do Pelado Real, pelos jogos emocionantes.

 

As donas da bola: jogadoras e pesquisadoras driblam e combatem a invisibilidade do futebol feminino
As donas da bola: jogadoras e pesquisadoras driblam e combatem a invisibilidade do futebol feminino