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Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
Fiu-fiu. Ela para de amamentar, cobre o seio exposto, o leite escorre, o mamilo proibido. Fiu-fiu. Estava tão calor que ela escolheu sair de vestido, e sentiu vergonha, pensou ‘porque não coloquei calça?’, mas com calça, lenço, burca, talvez até armadura medieval, fiu-fiu. Fiu-fiu desconcentrou a grafiteira adolescente, que cortava o aço do trem com a tinta da lata, fiu-fiu desconcertou também a grafiteira do Cairo, que descobriu num rasgo de roupa que a praça é pública, mas não para ela. Fiu-fiu que faz a menina ter medo de sair da rua, medo de uma cidade que como seus prédios é fálica e desenhada para ser habitada por homens.
E não fica no assovio agudo a violência da cidade hostil à mulher. Quando meninas são impedidas de ir para escola, ou nela recebem um tratamento diferente por conta de seu gênero, é a mordida da cidade. A rua também golpeia quando à noite as lamparinas estão apagadas, e a jovem experimenta o susto a qualquer ruído, o pescoço que dói por olhar constante para trás, a vontade que a rua encurte. A violência ruge do lado de fora, mas não é mais silenciosa do lado de dentro, nas casas onde apanham ou ouvem ‘não’. Ir e vir é um direito que as mulheres ainda não tem.
Se fossem poucas as cidades dos homens, mas são todas elas, as que fervilham e as plácidas, o machismo impeditivo, seja ele brasileiro ou egípcio. 86% das mulheres brasileiras já sofreram alguma forma de assédio público e metade delas já foi seguida na rua, segundo a pesquisa Cidades Seguras para Mulheres, da ONG ActionAid Brasil. No Egito, as cinegrafistas Colette Ghunim e Tinne Van Loon criaram o vídeo Creepers on the Brigde (Esquisitões na Ponte), onde com uma câmera escondida elas demonstraram a violência vivida diariamente por 99% das mulheres egípcias.
Quando Bela Gregório foi interceptada pela polícia enquanto grafitava em São Paulo, o policial queria que ela fosse sozinha com ele na viatura, enquanto os grafiteiros iriam em outra. Mira Schihaed teve que pintar um mural no Cairo com discrição e silêncio.
Tornar as cidades afáveis às meninas e às mulheres que as habitam é um movimento de resistência, que acontece quando uma menina grafita, quando uma urbanista desenha uma praça ou uma gestora pensa políticas públicas sobre a perspectiva de gênero. A cidade para mulheres não é utópica, ela é um objeto de luta constante de costuras entre feminismo, urbanismo e ocupação; e só é possível ser for feita por quem sofre as violências e as combate com spray de pimenta ou de tinta.
Dentro da cidade dos homens, a trincheiras das mulheres
Ela ainda não tem altura, mas já conhece da guerra como uma mulher adulta. Escolhe cuidadosamente sua armadura; a cidade pode estar queimando, mas ela veste uma calça comprida. O dono da padaria assovia, o rapaz dentro do carro grita impropérios. Devagarzinho ela franze o cenho, um vínculo tenso se forma entre sobrancelhas e os dentes trincam. Se tiver sorte, ela chega ao seu destino, sabendo que do outro lado da cidade, não conseguindo escapar as estatísticas, uma menina da mesma idade foi estuprada porque decidiu sair de casa – ou talvez ficar nela.
Com uma taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking de países mais violentos para as mulheres, segundo o relatório Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil. É uma violência que tem cor e idade; a população feminina negra é mais afetada, enquanto na faixa entre 18 e 30 anos acontecem as maiores ocorrências, em especial no âmbito doméstico. A campanha Chega de Fiu Fiu, da ONG Think Olga, cartografou coletivamente os assédios sofridos por meninas e mulheres nas cidades brasileiras, em um levante para retomada das ruas e da segurança.
O que as estáticas e o que fica à margem delas provam é: às meninas e mulheres é negado o direito de ir e vir. “É como se nós nunca estivéssemos autorizadas e quando nos desafiamos a essa não autorização’, infringíssemos um limite e pedíssemos para ser assediadas”, fala Rossana Tavares, arquiteta e autora da tese Indiferença a Diferença: Espaços Urbanos de Resistência na Perspectiva da Desigualdade de Gênero.
Quando Rossana compartilhou com seus colegas de doutorado o desejo de falar sobre possíveis pontes entre urbanismo e feminismo, os olhares que recebeu foram de estranhamento. “Sofri preconceito dentro da minha sala de aula, e alguns homens se recusavam a debater o tema. Foi nesse momento que vi que o preconceito está presente não somente dentro de nossa rotina, mas também no espaço acadêmico, que deveria ser um lugar de reflexão, de se pensar coisas novas”, recorda.
A cidade não convidativa às mulheres não se restringe a espaços urbanos, e sim a todas as relações tecidas por conta de uma proximidade espacial e sensorial. Quando a violência acontece dentro do espaço privado, ela é sintoma de uma construção histórica do papel da mulher dentro das instituições e porta afora. No artigo, Rossana fala sobre a mulher que é estereotipada como irracional, emocional, dependente, privada/dentro, próxima da natureza que da cultura; a cidade erguida ao redor da figura estereotipada não quer recebe-la, quer encarcerá-la, para que ela continue a cumprir um papel histórico de não ocupação e não independência.
“Quando falamos de mulheres, não devemos falar no singular, e sim no plural – não existe uma identidade feminina. As cidades são igualmente múltiplas, experimentadas de maneiras diferentes por diferentes mulheres”, continua Rossana. Como um complexo origami, a cidade se desdobra no que é oferecido e no que é negado para quem habita diferentes localizações das cidades; mas o que deve ser assegurado é o direito de cada um delas e de ir e vir.
E, para tanto, as mulheres tem que estar ativamente conectadas as políticas públicas que moldam os municípios e estados, ocupando cargos representativos no cenário político brasileiro. “Mulheres precisam ocupar cargos dentro de instituições, do contrário vai ser sempre a lógica masculina a imperar. Embora os homens possam ser sensíveis à causa feminista, eles nunca vão conseguir experimentar o que experimentamos”. No Brasil, apenas 8,6% das mulheres ocupam cargos políticos, e isso é proporcionalmente refletido no estado de violência e de opressão sentido nas ruas.
Rossana tem muita viva a memória de, com 7 anos, ter sido assediada por um homem, que mandava beijos e mexia em seu pênis olhando para ela. A hostilidade perdura até hoje, quando desvela o seio para amamentar sua filha e recebe olhares reprovadores. Mas ela continua expondo o peito, como as mulheres continuam ocupando as ruas. Nesse sentido, a arquiteta vê o movimento das grafiteiras como um levante. Uma cidade afetiva talvez assim só se torne sob a pressão feminina.
E então, entre as trincheiras da cidade, a quente Cairo ou cinza São Paulo, a poeira ou asfalto, a revolução ou a manifestação na Avenida paulista, a menina grafita e picha.
Grafite de Alaa Awad
No muro, ela picha o não à violência
O fantasma do trem que pela manhã circulou ainda confere aos trilhos um ar de perigo. Na sacola de plástico de um mercado qualquer, latinhas de tinta tintilam umas contra as outras. Quem pula os muros para pichar as linhas de trem tem um quê de felino, guepardos urbanos que silenciosamente se aproximam da presa que são os muros. A mandíbula é a tinta e a mordida é o picho. Letras vão tomando o que era sem cor, as orelhas se pudessem ser como de felinos girariam para trás, atentas a qualquer sirene ou movimento estranho.
Se o dedo que movimenta a latinha for de uma mulher, os perigos de ser pega grafitando são outros. Ao invés de perder a tinta, arriscar o corpo numa viatura em que estão somente ela e o policial pesadelo. Se menino ela poderia fugir pelas ruas mais escuras e encontrar abrigo em um bar, como menina a rua por onde ela escapa também é o lugar de onde ela quer fugir. Se pichar já é por si um movimento de resistência e territorialização, pichar enquanto mulher é ter a força de um canhão contra a violência do dia-a-dia.
Mulher pode ser grafiteira, pode pichar, pode ser a melhor fotógrafa de grafite. Os olhos da grafiteira Bela Gregório, coroados de franja castanho-escura, brilham quando fala de Martha Cooper, a garota kodak, que sempre desafiou a gravidade forte como machismo para registrar o cenário pichado dos muros norte-americanos. Também brilham quando ela conta como se envolveu no cenário de pichação paulista – o sedutor ar do proibido a levaram a praticar o bomb, que são letras de duas ou mais cores pintadas em velocidade e silêncio. “Sempre me interessei pelo grafite como intervenção no espaço público, da agressividade e da sujeira. Gosto de pintar, da sensação de estar onde não se pode, da adrenalina depois do término”, conta.
Quando começou a grafitar, em 2008, eram mãos masculinas que carregavam tinta e escadas pelas madrugadas. O ato de grafite pressupõe o perigo e a tensão, e é o que atrai o grafiteiro, como também o que repele a grafiteira. “O corpo da mulher e o do homem na rua, como em qualquer lugar, é um corpo olhado de maneira diferente. A forma como a rua vai te trata, como o policial te trata. Ele pode dar um cacete no menino, mas ele pode ter estuprar”.
Se a grafiteira consegue transpassar o pavor da rua hostil, ela tem depois o desafio de ser aceita dentro do próprio cenário do grafite. “Não adianta, rola uma diferenciação: se você é mulher, tem de ser auto provar mil vezes dentro do próprio meio”, Bela sentenciou, relembrando de eventos de grafite onde homens recebem os melhores muros, enquanto mulheres recebem os não-visitados, com rachadura, os que ficam no fundo. Bela não é ingrata aos meninos que a ensinaram a pichar, mas é plenamente consciente da força de movimentos onde meninas se agrupam e ganham a cidade com tinta.
‘Você pinta que nem um boy’ não pode ser parâmetro de qualidade para o trabalho de mulheres grafiteiras, embora incontáveis vezes Bela já tenha escutado a frase. Foi para não ouvir nunca mais que se reuniu a um grupo de amigas para montar o Efêmmera, coletivo que incentiva a aproximação de meninas envolvidas em artes de ocupação urbana. O que começou com uma reunião de poucas amigas conta hoje com 30 garotas, que não somente trocam experiências, como incentivam e indicam o trabalho uma das outras.
Por grafitar, por andar a pé em tênis surrados, a cidade dos olhos de Bela é uma cidade em transformação tão acelerada como a de uma célula. Ela consegue perceber se um grafite novo brotou, se um bomb atravessou o outro, se no cume do prédio alguém deixou sua letra. Para essa janta lenta da paisagem, Bela precisa da tranquilidade e de segurança. Ela quer percorrer o Minhocão na velocidade dos caramujos e com shorts na altura desejada. “Sempre são minutos de tortura até chegar em casa. A vista incrível do viaduto, as letras maravilhosas, eu poderia estar aproveitando, mas estou passando uma tortura até chegar no meu prédio e falar, ‘ufa, entrei!’”.
Existem poucas artes que digam mais da ocupação do que aquelas impossíveis de ser ignorada pelo olho. O olho que diz ‘que feio’, que se hipnotiza, que tira uma foto, é o olho que reconhece que a missão do spray foi cumprida, No contexto da luta de gênero, a intervenção vai muito além do visual – a menina que pode pintar é a menina que pode ir e vir. “Grafiteira é rua. É uma arte ligada a quanto você vive a cidade, o quanto anda por ela, é não saber para onde está indo e encontrar um muro X perfeito para intervir”, Bela conclui. A cidade que ela imagina ideal não legaliza o grafite, afinal sua proibição é que dá o gosto, mas torna comum o direito de ir e vir da mulher, a que grafita no centro, no Capão Redondo e a que não tem medo de grafitar no Cairo queimando em revolução.
A dupla revolução das egípcias
Foram dias de fúrias os dias contra os trinta anos. Milhares de egípcios se amontaram ombro a ombro na circunferência da praça Tahir para protestar contra as décadas de ditadura de Hosni Mubarak. Em 2011 floresceu a Primavera Egípcia, profundamente influenciada por primaveras de países avizinhados – egípcios e egípcias foram às ruas querendo toma-las física e simbolicamente. Reinvindicações políticas, como maior liberdade de expressão e falta de moradia, foram expressas em grito, punho cerrados e também em spray. A nação das grandes grafias em muretas, onde figuram Anúbis dourados e escaravelhos azuis, tornou-se um país tomado por grafites.
No meio da multidão de quatro anos de revolução, gritos abafados, calcinhas rasgadas a dedo, mulheres caídas no chão sujo, e homens cercando-as como carne. A violência sexual contra a mulher sempre foi arma do sistema para impedi-la de protestar, e na maior revolução do Egito desde 1977, não foi diferente: mais de 200 mulheres foram violentadas durante os protestos, desde egípcias ativistas a jornalistas internacionais cobrindo a revolução. Os estupros aconteciam de forma semelhante: mulheres eram separadas de seus grupos, e levadas para lugares distantes ou no meio da multidão, eram abusadas por um grupo de homens.
A mulher que sofreu o estupro na Praça Tahir não é estranha a violência. Em 2014, a iniciativa de mapeamento HarassMap constatou que 95,3% das mulheres egípcias já sofreu algum tipo de abuso, mais comumente no período da tarde, tanto nas ruas quanto nos transportes públicos. As razões de um mal que atinge praticamente todo o gênero feminino egípcio tem a ver com uma conjuntura religiosa e cultural patriarcal. Mulheres saem à rua para estudar, trabalhar e protestar, enquanto homens, segundo a pesquisadora Nadia Ilahi, enfrentam uma crise de identidade masculina. Exercer o assédio configura-se como uma ferramenta de afirmação e superioridade.
Junto a grafites que lamentavam os mortos e pintavam rostos de mártires que o governo queria que fossem esquecidos, outros começaram a despontar: uma sequência de sutiãs multicoloridos; uma Nefertiti veste uma máscara de gás; a heroína da modernidade usa lenço na cabeça, salto nos pés, e tem um olhar travesso e soberano de quem vence batalhas diárias: na extensão do braço, a latinha jorra spray de tinta e feminismo em homens subitamente diminutos como baratas.
O grafite acima, da artista Mira Shihadeh, cravou o muro com a raiva de sua impotência. “Senti que tinha que fazer isso. Pareceu-me fútil, não acredito que a arte possa mudar o mundo, mas em minha impotência eu escolhi soltar minha assim. Pude ilustrar a mensagem de um modo que qualquer pessoa pudesse entender, ainda que a visse de relance”, explica Mira.
A mulher do grafite ‘Não à Violência Sexual’ é a mulher, que como a dos grafites de artistas como Alaa Awad, Bahia Shehab e Hend Kheera, sempre foi de luta. Não foi a Revolução Egípcia que as despertou para uma consciência da necessidade mudança, e nem mesmo se tornaram grafiteiras por conta de um boom de muros subitamente coloridos. A mídia permitiu simplesmente que fosse olhado um ponto em sua trajetória de batalha. Se foi feita uma revolução contra as ditadores, quem então fala das pequenas revoluções de todos dia, do caminhar ainda que com medo, de escolher uma profissão diferente, de grafitar.
Crescendo por dez anos na Arábia Saudita e cidadã do Cairo, Mira surpreendeu-se com a familiaridade à hostilidade quando visitou o Brasil. “O comportamento dos homens é bastante similar nos dos países”, relata. Ao grafitar pelas ruas da capital egípcia, Mira tomou o cuidado de ser discreta e sentir-se sempre segura. A não segurança das mulheres a fez sair para pintar, e ela enxerga os assédios como uma arma dos homens para desencorajá-las a ocupação. Quando perguntada como o movimento do grafite egípcio se configura agora, a resposta é muito curta: “Houve um tempo de segurança para que artistas pudessem falar contra o regime. É um tempo que não existe mais”.
O tempo das mulheres é o que está acontecendo. Se colocadas em uma roda de conversa, Rossana, Bela e Mira compartilham espaços que não podem ser separados por oceanos ou ponto cardeais. Suas histórias falam da violência e da dificuldade, mas também da insurgência. Falam do machismo e das cidades hostis à mulheres como sintomas de uma construção humana que não mais cabe. É um muro que já foi imutável por muito tempo, que precisa de um jato de tinta teimoso, da cor que elas escolherem, no formato de sua liberdade em pintá-los.
Grafite de Mira Shihadeh/Divulgação