Juliana Sada, do Promenino com Cidade Escola Aprendiz
“Infelizmente, 23 anos após a criação do ECA, a criança não é tratada com absoluta prioridade, o Estatuto não é respeitado. Muda partido, muda prefeito e isso continua”, afirma indignada a presidente do Conselho Tutelar de Campo Grande (MS), Cassandra Szuberski. Instrumento fundamental para a efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, os Conselhos ainda sofrem com questões básicas e não conseguem atender toda a demanda.Tido como uma legislação avançada, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) chega aos seus 23 anos neste sábado (13) ainda sem ter sido plenamente implementado. Criado em 1990, o ECA inovou ao colocar a criança e o adolescente como prioridades perante a sociedade e os gestores públicos.
O Estatuto determinou a criação de Conselhos Tutelares nos municípios para atender as denúncias de violações de direitos das crianças e adolescentes. Passadas duas décadas, o Brasil está próximo de atender a essa obrigatoriedade. Em 2012, 99,3% das cidades possuíam ao menos um Conselho, de acordo com a Pesquisa de Informações Básicas Municipais, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Segundo pesquisa da Andi, em 2010, havia 5.772 Conselhos nos 5.565 municípios brasileiros.
No entanto, vemos problemas em municípios grandes e capitais, que sofrem com poucos órgãos, como no caso de Campo Grande. “A cidade está atingindo status de metrópole, chegando a 800 mil habitantes, e temos só três Conselhos Tutelares, é muito pouco, existe uma defasagem”, afirma Cassandra Szuberski.
O Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) tem a resolução 139, que diz: “Para assegurar a equidade de acesso, caberá aos Municípios e ao Distrito Federal criar e manter Conselhos Tutelares, observada, preferencialmente, a proporção mínima de um Conselho para cada cem mil habitantes”.
Falta de estrutura
A área da Grande São Paulo é uma das pioneiras na criação do órgão. Diadema instituiu um dos primeiros Conselhos Tutelares em 1992 (o primeiro foi o de Porto Alegre), entretanto, atualmente com uma população de quase 400 mil pessoas, o município conta apenas com dois Conselhos mal equipados. “É uma luta diária, em um deles falta praticamente tudo, no outro não temos computadores ligados à internet, nem com impressoras”, relata o conselheiro tutelar David Couto.
Em Diadema, faltam também automóveis que são utilizados para realização de averiguação de denúncias, acompanhamento dos casos e contato com outros órgãos públicos. “Cada Conselho Tutelar tem um carro, mas a cada dia um conselheiro está na rua, então não é suficiente. No dia em que eu estou na rua fazendo minhas notificações e visitas, tenho também que protocolar nos órgãos públicos”, conta Couto.
A falta de transporte também é sentida em Acaraú, no litoral cearense, onde o Conselho não possui veículo próprio. “Quando precisa, a gente liga para Secretaria de Ação Social e solicita, mas não tem um carro à nossa disposição”, conta a conselheira Maria Vilani Sales. Ela relata que quando é necessário fazer alguma visita na região próxima ao órgão, os funcionários utilizam o próprio veículo. “Nosso maior problema é transporte e sua manutenção. Precisaríamos diariamente, inclusive de fim de semana e à noite, já que fica sempre alguém de plantão”, demanda Vilani.
As deficiências de estrutura desses órgãos são recorrentes em todo o país. Para um bom funcionamento, os Conselhos necessitam de uma infraestrutura com telefones, computadores, internet, carros para averiguação de denúncias e salas com privacidade para receber denúncias e mediar situações de conflito. Levantamento realizado em 2006 pelo Centro de Empreendedorismo Social e Administração revelou que apenas 68% dos Conselhos Tutelares possuíam computador, 63% tinham telefone fixo e 39% contavam com veículo. A mesma pesquisa mostrou que 12% dos órgãos não possuíam sede própria permanente.
Integrante da primeira gestão do Conselho Tutelar de Diadema, Maria Aparecida Azevedo, a Cida, relata que um dos grandes problemas enfrentados na época já era a falta de estrutura. “Era um órgão muito novo, a gestão não tinha uma verba direcionada”, relembra.
Desvalorização
Para Cida, uma das grandes mudanças do início dos anos 90 foi a garantia de direitos trabalhista dos conselheiros. “Agora, tem uma lei que garante, entre outras coisas, os direitos previdenciários e férias remuneradas. Na época não tínhamos nada, até o salário foi difícil de garantirmos no início”, relata. A lei 12.696 que garante os direitos trabalhistas foi sancionada há apenas um ano e depende da criação de regulação municipal para sua aplicação.
Outra questão latente é a remuneração, até hoje não há uma lei que determina o piso ou algum parâmetro de salário. Antes da lei 12.696, o ECA apenas indicava que o município decidiria sobre uma “eventual remuneração de seus membros”.
Em Acaraú, no Ceará, a lei municipal determina que o pagamento seja de dois salários mínimos, o que equivale a R$1.356 e exige-se ensino médio completo para que se assuma o cargo. Já na capital de Mato Grosso do Sul, o salário é de R$2.187 e os conselheiros devem possuir ensino superior. A conselheira de Campo Grande desabafa: “essa talvez seja minha última gestão. Eu não consigo me sustentar, tem gente do administrativo que ganha quase o mesmo que a gente e não tem a mesma responsabilidade, o mesmo dever. São muitas frentes de batalha e é exaustivo”.
Campo Grande possui outra situação peculiar, de acordo com Cassandra: os plantões não são remunerados. “Amanhã, sábado (13), dia do aniversário do ECA, começo a trabalhar às sete e meia da manhã e só vou parar às cinco e meia da tarde de segunda-feira, e meu salário não muda”, conta.
Trabalho em rede
Atualmente, as denúncias podem ser realizadas pessoalmente nos Conselhos Tutelares por telefone ou e-mail, quando o órgão dispõe desses instrumentos, ou pelo Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Entretanto, ainda há muitas fragilidades nos canais que compõem a rede. Em um dos casos analisados pelo Promenino, a conselheira tutelar de Inhapi (AL), Eliane Santos da Silva, afirmou não receber denúncias relacionadas a trabalho infantil. Entretanto, o município tem 28,5% da população de 10 a 17 anos trabalhando de acordo com dados do IBGE, um dos piores índices de Alagoas.
Em Acaraú, Vilani relata que, aos finais de semana, o Conselho Tutelar fica fechado e o plantão é dado por um conselheiro que fica de prontidão. “Nós não temos uma secretária que fique na recepção para atender as pessoas”, afirma. Já Cida acredita que o “Disque 100 ainda é pouco divulgado, a população não tem muito acesso. É só ver que as salas dos conselhos tutelares estão cheias, alguns tem até senha”.
Outro ponto delicado da atuação é a relação com os outros atores da rede de atendimento, que recebem os casos vindos dos Conselhos. Em Campo Grande, Cassandra relata que muitos casos que recebem dependem da ação dos governos, como a criação de vagas em creches e construção de abrigos. “Aqui é rota do narcotráfico, então vêm muito adolescente de outros estados que se dirigem à fronteira para buscar drogas. Quando eles vêm aqui, temos que aplicar medidas de proteção social, e uma delas é encaminhar ao abrigo, mas não há vagas”, conta.
Em Diadema, David Couto relata que um dos problemas mais recorrentes é de adolescentes usuários de drogas, que deveriam ser encaminhados para a rede de saúde mental ou assistência social. “Nossa demanda mais urgente é a questão da drogadição e na área da saúde, como um todo, faltam profissionais, como pediatras, psicólogos e também faltam na área de saúde mental”, relata Couto.
Além da falta de profissionais e estruturas, Cassandra destaca que há pouco preparo para lidar com as questões da infância e adolescência, “após 23 anos do ECA, ainda falta uma sensibilidade dos profissionais, existem poucos profissionais voltados para infância e juventude”.
Leia mais na reportagem “Entraves políticos e falta de integração prejudicam aplicação do ECA”