Créditos: Brian Jackson
Yuri Kiddo, da Cidade Escola Aprendiz
Durante muito tempo as cidades parecem hipnotizar com tantas luzes brilhantes e promessas de progresso e de um “futuro certo”. Mais de 50% da população mundial vive em cidades médias e grandes onde o crescimento da urbanização é inevitável. É cada vez maior o número de crianças que crescem em áreas urbanas, atualmente já são mais de um bilhão de novos seres humanos espalhados ao redor da Terra, representando 60% aumento da população nos centros urbanos. Dentro de poucos anos, a maioria das crianças irá crescer em cidades e não nos meios rurais.
A análise é do relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Crianças em um Mundo Urbano (2012). O documento afirma que em 2050, sete em cada 10 pessoas viverão em áreas urbanas e a maior parte desse crescimento se dá em países de baixa e média renda. As estimativas sugerem que dezenas de milhões de crianças vivem ou trabalham nas ruas de cidades grandes e médias em todas as partes do mundo – e o número vem aumentando em função do crescimento da população global, da migração e da urbanização crescente.
Os centros urbanos oferecem diversas vantagens como escolas, serviços de saúde e espaços de lazer e recreação. Porém, as mesmas cidades que acolhem também são as que mais segregam e apresentam algumas das maiores disparidades em termos de saúde, educação e oportunidade para crianças e adolescentes, fazendo com que muitas famílias passem a viver em condições precárias, com direitos violados e chegando a situações extremas. A exploração de trabalho infantil ou ter que escolher entre morar ou comer, levando muitas famílias à situação de rua, são algumas delas.
Contraste social
Essas pessoas enfrentam a ameaça constante de expulsão, ainda que vivam nas condições mais inadmissíveis – em habitações inseguras e em núcleos superlotados nas periferias das cidades, seriamente vulneráveis a doenças e catástrofes. Por que a família vai para a rua? “Alguma coisa está acontecendo no território dessa família e ela teve que vir para um lugar onde o poder aquisitivo é maior para suprir algumas necessidades básicas”, explica a psicóloga Cícera Pinheiro, atuante no Presença Social nas Ruas (PSR). A entidade é conveniada à Secretaria Municipal de Assistência Social de São Paulo, e responsável por projetos de combate à exploração de mão de obra infantil. Além das necessidades básicas, a organização levanta as demandas de adoecimento psíquico, situação irregular da criança com a escola e questões de enfermidade na região de Pinheiros e arredores, na zona oeste da capital paulista.
Segundo dados do Instituto Social Santa Lúcia, a cada cem pessoas abordadas por mês na região, em média, 80 delas são crianças e adolescentes em situação de trabalho. Acompanhadas geralmente da mãe ou de algum adulto responsável, meninos e meninas viajam das periferias de São Paulo até a região de Pinheiros e Vila Madalena porque acreditam que seja a concentração de pessoas com maior poder aquisitivo e vida noturna, aumentando as chances de se beneficiarem financeiramente com gorjetas.
A maioria das famílias vêm de Pirituba (20 quilômetros da região de Pinheiros), Itaquaquecetuba (50 quilômetros), Taubaté (145 quilômetros) e Pindamonhangaba (165 quilômetros), e arrecadam, por dia, entre R$ 100 e R$ 150. “Para nossa tristeza estamos percebendo que a gorjeta na região é muito alta, em apenas um fim de semana uma criança consegue arrecadar até R$ 300”, afirma a psicóloga. “Os programas de transferência de renda em relação a isso não significam nada”, completa. Por mês, crianças e adolescentes conseguem faturar até R$ 3 mil, enquanto o Bolsa Família, programa do Governo Federal, por exemplo, tem uma ajuda de custo de no máximo R$ 306 por família.
“A pessoa que dá R$ 50 de caixinha para a criança é a mesma que liga para reclamar e exige uma ‘higienização’ no local. É o típico pensamento preconceituoso de que a pessoa está pagando para não ver mais aquele problema social ali”, esclarece a assistente social do PSR, Lais Boto. De acordo com a líder do Programa Nossas Crianças, Andréia Lavelli, da Fundação Abrinq, “dar dinheiro ou comprar qualquer produto vendido por crianças ou adolescentes nos faróis só perpetuará a situação de pobreza e não acabará com o problema”. Quando uma criança for encontrada em situação de trabalho, Lavelli esclarece que a pessoa deve procurar o conselho tutelar mais próximo da região onde esse menino ou menina encontra-se trabalhando, ou denunciar ao Ministério Público.
Riscos e exploração
Há pelo menos 245 pontos de mendicância infantil somente na cidade de São Paulo, entre cruzamentos, semáforos e feiras livres. O mapeamento da cidade durou dois anos e foi coordenado pelo pedagogo Itamar Moreira com ajuda do Instituto Social Santa Lúcia. O resultado foi publicado em 2009, no livro “O Trabalho Infantil na Cidade de São Paulo” e revela que 25,7% das crianças e adolescentes estão em Pinheiros; 17,1% em Santo Amaro, zona sul, e 15,1% em Santana, zona norte. Lapa, Vila Mariana, Mooca, Jabaquara, Saúde, Moema e centro são as outras regiões de maior concentração dessas crianças.
Muitos desses meninos e meninas são coagidos a trabalhar em atividades que envolvem riscos e exploração. “A criança que trabalha apresenta sérios problemas de saúde como fadiga excessiva, distúrbios do sono, irritabilidade, alergias e problemas respiratórios. O esforço físico pode prejudicar o seu crescimento, ocasionar lesões na medula espinhal e produzir deformidades”, explica Lavelli. Quem vive em centros urbanos se depara facilmente com crianças engraxates, flanelinhas, guardadores e lavadores de carros, vendedores, malabaristas e distribuidores de panfletos em faróis, catadores de latinhas, trabalhadores de lixões e trabalho infantil doméstico.
No âmbito da educação, as crianças e adolescentes que trabalham apresentam cansaço excessivo, dormem em sala, têm o emocional instável e pode levar ao abandono da escola. “Estar fora da escola pode tornar a criança uma vítima de exploração sexual, tráfico de drogas e outras atividades ilícitas”, conclui. Cícera aponta que, além disso, as crianças têm vergonha de dizer que sustentam a casa por medo dos colegas tirarem sarro.
Ciclo
A mãe ou o responsável pelas crianças usam de violência física e verbal para controlar as vendas, como explica a assistente social, Boto. “Quando as crianças retornam para o responsável, necessariamente têm que estar com a caixa de chiclete vazia ou todos os panos de prato vendidos, porque senão passam por violência física ou verbal até na frente de todo mundo, na rua mesmo”. As mães, geralmente agressivas, segundo a psicóloga, elas já conhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) inteiro. “Elas dizem saber que estão erradas, que não deveriam trazer os filhos, mas que não têm o que comer em casa”.
Quando a criança sai dessa fase e vai para a adolescência, a situação de rua é mais presente e comum a dependência química e a exploração sexual. Também há a questão do consumismo, como comenta Cícera Pinheiro. “O adolescente diz que precisa ajudar a mãe, mas que também tem que comprar o que é necessário para ser aceito na escola ou em determinado grupo”, discorre. “Quando o trabalho na rua e a mendicância não são mais o suficiente e não dão mais retorno, esses meninos e meninas têm grande chance de ingressarem no crime”, explica Cícera. Geralmente essas crianças e adolescentes já vêm de gerações ou contato com a vida na rua ou com trabalho infantil. “Qual a outra forma que esses adolescentes aprenderam a ter dinheiro?”, questiona Boto.