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O Castelo Botânico, desenho de Gustavo Onari Siqueira (à época, com 6 anos de idade) | Crédito: Roberto Parente/DCB

Por Ana Luiza Basílio, do Centro de Referências em Educação Integral,
com Cidade Escola Aprendiz

“Aprendi que é possível conhecer meninas e meninos, desde bem pequenos, a partir dos e com os seus desenhos”. A constatação é da professora da Universidade de São Paulo (USP), Marcia Gobbi, ao relembrar como se deu sua aproximação com o universo dos desenhos infantis, um de seus principais temas de pesquisa.

O início desse trajeto remete ao tempo em que ela era professora de educação infantil na cidade de São Paulo, atuação que a aproximou das crianças e de suas criações. No entanto, a percepção apurada sobre os desenhos infantis implicou em um exercício de sociologia de “estranhar o que é familiar”, como explica. “O fato dos desenhos estarem presentes não significa que os vejamos, que tenhamos olhares mais aguçados e preocupados com eles. Naturalizamos sua presença entre nós e isso é algo perverso, uma vez que, com isso, deixamos de efetivamente olhar para o que comunicam”, avalia.

O estranhamento, segundo ela, é condição para que se possa imaginar, problematizar o que constitui o cotidiano e é aparentemente natural. “Com isso, os traços e linhas infantis ganham importância e se torna possível vaguear pelas retas e curvas, passeando por elas e aprendendo com elas”, o que julga fundamental. “Quando olhamos atentamente para essas produções começamos a compreendê-las em suas práticas e lógicas infantis e perceber que há diferenças a partir dos contextos e condições de criação, sendo possível observar diferenças e marcas de classes sociais, gênero, étnico raciais, entre outras”.

Em entrevista ao Centro de Referências em Educação Integral, a professora fala mais sobre o papel dos desenhos no desenvolvimento integral de crianças e reforça que compreender essas produções diz de um movimento de sair do “confortável lugar adultocentrado e se relacionar partir de perspectivas horizontais de relações humanas”. Confira!

Centro de Referências em Educação Integral: O que os desenhos representam para as crianças?
Marcia Gobbi: Várias são as pesquisas que se ocupam de conhecer os desenhos em distintas abordagens. Eu diria que para sabermos o que os desenhos representam para as crianças é necessário perguntar para elas. Não, não estou sendo indelicada!! Porém, nos esquecemos de perguntar e observar as crianças enquanto desenham. Somos acostumados a recolher os desenhos e considerá-los apenas em seu produto final, deixando o processo de lado. Com isso, a riqueza das escolhas e conquistas das crianças enquanto desenham são pouco vistas ou consideradas em sua plenitude. Ainda assim, é importante que os desenhos sejam vistos e discutidos entre as crianças e por elas, por que não? Desse modo podemos começar a saber o que os desenhos representam para as meninas e meninos. Será que é a mesma coisa? As meninas desenham e valorizam os desenhos do mesmo modo que os meninos? Há condições sociais que ora consideram mais a uns que a outros? Várias pesquisas têm nos mostrado a importância dos desenhos para as crianças como forma de orientar seu pensamento sobre o papel. O desenho pode ser visto como uma pesquisa pessoal das crianças desde pequenas e, como tal, representam conquistas, ensaios em que mundos são imaginados e criados sobre diferentes suportes e não apenas o papel. Sabe-se que são vários os locais sobre os quais desenham e as paredes, chão, areia, terra, azulejos não escapam disso e esses diferentes suportes materializam de maneiras diversas aquilo que cada criança pesquisa, experimenta, inventa e cria.

CR: E o que eles dizem sobre as crianças?
Marcia: O que os desenhos dizem sobre as crianças? Muito. Como já mencionei anteriormente são formas de conhecê-las de modo profundo em suas condições sociais, culturais, históricas. Os desenhos criados pelas crianças em 1930, no Brasil, são iguais àqueles elaborados hoje em dia, no mesmo país? Há um processo de transformações históricas, sociais, culturais e econômicas que criam diferentes contextos de criação. As crianças, como atores sociais que são, sujeitos e ativas nesse processo, apresentam suas marcas ao longo da criação e não somente no resultado final. Em meu doutoramento, tomando a liberdade de trazê-lo como exemplo, em que estudei os desenhos das crianças dentro do acervo de desenhos do poeta Mário de Andrade, que está no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, e é composto por mais de dois mil desenhos guardados desde 1926 até 1945, podemos observar essas transformações das quais falei. Quando considerados na relação com os dias atuais podemos ver desde o desaparecimento das margens – frutos de modelos escolares e suas imposições – até mesmo temáticas próprias de um período, bem como, as conhecidas casinhas portuguesas que hoje já não têm tanto peso nos desenhos feitos pelas crianças.

CR: Como situá-los de acordo com o desenvolvimento da criança? 
Marcia: Eles mudam de acordo com a cultura, com o período, com a presença ou ausência de alimentos à imaginação e aos processos de criação. Ao acreditar que os desenhos são produtos de cultura e de cultura infantil não posso deixar de observá-los dentro de contextos diversos: são artefatos de cultura. Ou seja, não sofrem mudanças apenas a partir de fases, mas de condições de produção. São os registros gráficos e visuais que resultam de escutas e que, ao invadir as paredes, podem impregnar espaços, personalizá-los e deixar como herança as marcas históricas de cada um, evidenciam trajetórias de sonhos, desejos, experiências partilhadas com o coletivo infantil, com os adultos ou individualmente. Com isso, não há fases, mas histórias de crianças. Temos que olhar, guardar, considerá-las em sua “inteireza”.

Pesquisa: Em artigo, a pesquisadora esclarece os fundamentos para a pesquisa Olhar sobre a cidade: meninos e meninas pequenas e seus modos de fotografar e desenhar São Paulo

CR: Como essas reflexões se espelham na prática?
Márcia: Como professora, busco instigar alunos e alunas a olhar os desenhos das crianças e elas próprias enquanto desenham. A última experiência gratificante que tive nesse sentido, e bastante particular, refere-se à uma pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) chamada Olhar sobre a cidade: fotografia e desenho na construção de imagens sobre São Paulo a partir de crianças das escolas municipais de educação infantil, em que buscava-se compreender a cidade ou as diferentes cidades existentes em São Paulo a partir das crianças frequentadoras de Escolas Municipais de Educação Infantil paulistanas. Em andanças por distintos bairros, procurou-se esse conhecimento e reconhecimento a partir dos desenhos e de fotografias feitos pelas crianças em metodologia de pesquisa própria aos estudos com crianças. Ainda estou com material riquíssimo e belíssimo a ser vasculhado e analisado, colocando à lume os estudos sobre infância e desenhos e suas representações sobre as cidades que, como venho observando, são recriadas pela meninada. A cidade da violência, do namoro, dos grafites, das práticas políticas em período eleitoral, enfim… as tantas cidades de São Paulo, existentes em São Paulo e que ora nos surpreendem, ora reiteram preocupações e espaços e pedaços já conhecidos e apresentados pelas crianças.

CR: E como pensar o incentivo e esse olhar para os desenhos da criança na perspectiva de que se desenvolvam integralmente?
Marcia: Acredito que todas as manifestações expressivas dos seres humanos exercem papel fundamental em seu desenvolvimento. Os desenhos servem para as crianças conhecerem outras e tantas possibilidades de expressão que envolvem o corpo que desenha, o desenho, a fotografia, o teatro, o cinema como dimensões que nos são furtadas vagarosamente e as quais são pensadas como pertinentes a apenas um grupo social. A defesa é que tais linguagens artísticas encontrem-se presentes no cotidiano das crianças como direito delas e não como premiação, como recheio entre disciplinas escolares consideradas mais importantes. Considero que as crianças possuem uma forma poética de ver e inventar mundos que permitem transferir da e para a própria vida aquilo que, muitas vezes, é apresentado na literatura, no teatro, no desenho, na dança, nos modos como produz suas esculturas, suas músicas e sons. A arte e suas manifestações artísticas e expressivas permitem certa transformação de si mesmo, ao mesmo tempo em que transformam ao Outro e às culturas em que estão e estamos imersos.

Nesse sentido, quando acreditamos nisso e provocamos espaços que garantam a existência dessas manifestações é possível promover esse chamado desenvolvimento integral que é o desenvolvimento de todos nós e para nós. Temos então, artefatos culturais, linguagens infantis que, de modo indissociável, revelam infâncias e as marcam em nós.

CR: Como avalia a criação desses espaços pelas escolas?
Marcia: Há um grande desafio, digo um para ser generosa, mas temos grandes desafios: vivemos em espaços da padronização que nem sempre reconhecem as manifestações artísticas e expressivas como direito de todos: adultos e crianças.

Dicas

Em entrevista, a pesquisadora elencou perguntas que toda escola deve fazer sobre o espaço de criação das crianças:

Como podemos trabalhar para garantir as criações de meninos e meninas?

Como podemos nos contrapor aos espaços cerceadores das capacidades criativas das crianças?

Como incentivar as crianças a explorar os ambientes e expressarem-se com palavras, gestos, danças, desenhos, teatro, música, sem recriminar os choros e o aparente excesso de movimentos?

O “ensino” e seu caráter escolarizante pode, por vezes, cercear a imaginação, a fantasia e excluir as falas das crianças e sua autoria nos processos de criação?

Com isso, prevalece certa tendência de promover algumas linguagens em detrimento de outras, que, vagarosamente vão sendo apagadas em nós e dos espaços escolares.

O espaço pode ser construído e observado coletivamente incluindo crianças e adultos em diferentes segmentos. Criamos cenários em que as crianças vão atuar e nos esquecemos que os mesmos podem e devem ser elaborados pelas crianças. Diria, retomando o que foi afirmado inicialmente que, para isso acontecer, é importante estranhar os espaços familiares em diálogos com outros espaços, ambientes e culturas das e nas escolas de educação infantil e ensino fundamental.

Esses espaços não podem ser apartados; é preciso que possam surgir com estupor das descobertas em distintos ambientes, elaborados não somente para as crianças, mas também com as crianças. Desse modo, os desenhos ganham outra proporção, agigantam-se tomando outros espaços, criando ambientes, fazendo-se presentes de forma permanente e vistos no cotidiano das escolas e comunidades.

Desenhos são formas de conhecer as crianças de modo profundo, diz pesquisadora
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