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ARTIGO 110/LIVRO 2 – TEMA: GARANTIAS PROCESSUAIS 
Comentário de Ana Beatriz Braga
Rio de Janeiro

O art. 110 do Estatuto da Criança e do Adolescente é de fundamental importância para a eliminação de princípios e posturas relativos ao adolescente que comete ato infracional.

A medida de privação da liberdade que vigorava no Código de Menores de 1979 revelava que o “menor” era, acima de tudo, objeto da intervenção do Estado, que, para assegurar a ordem pública, excluía-o do convívio social. A “defesa técnica” era facultativa, o que desobrigava o Estado de fornecê-la para os “menores”. Obviamente que esta omissão prejudicava principalmente os jovens das camadas de baixa renda, para os quais destinava-se, geralmente, o imediato confinamento em “instituições ressocializadoras”.

O artigo implica uma mudança no papel do Estado em relação ao adolescente praticante de delito. Até então, tratava-se de relação extremamente desigual, que reproduzia uma situação opressiva na qual o direito universal de ampla defesa era desrespeitado.

O Código de Menores de 1979 refletia uma concepção de infância e adolescência “menorizada”, que não incorporava a idéia de cidadania.

O jovem considerado infrator era visto de forma estigmatizada, surgido em um contexto de “patologia social”.

Sua conduta desviante de certos padrões estabelecidos de comportamento tornava-se a justificativa para a adoção de medidas repressivas, como a prisão em internatos nos quais o adolescente era ainda mais descaracterizado enquanto cidadão. A imposição de normas através de uma rígida disciplina, em que incluíam-se castigos físicos e morais, baseava-se no argumento de que aquele jovem possuía carências que o levavam a uma situação de anomia que deveria ser mudada por um “processo educativo”.

Contudo, aquela visão acerca do adolescente infrator enfatizava aspectos negativos de sua personalidade, e que muitas vezes eram considerados irreversíveis. Ele era percebido de forma descontextualizada; sua vida familiar, escolar e profissional não era vista em sua realidade, mas sim de maneira ideal. E o ideal, para um Estado centralizador e autoritário como o do Brasil dos anos 70, era conservador. Conservar certos modelos de família, de escola, de educação, de política e de economia que mantivessem a ordem e o progresso da Nação; conservar em prisões os marginais desviantes daqueles modelos.

Certamente que ainda hoje subsiste este ideal conservador, malgrado toda a propaganda de “Democracia e Modernidade” que o oculta.

Atualmente, tem sido cada vez mais substituída a prisão de “jovens marginais”, ou daqueles considerados potencialmente perigosos, por seu extermínio.

Por outro lado, na última década, o surgimento de movimentos sociais no Brasil em relação à infância e à adolescência resultou na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, agora, é lei, e expressa uma determinação legal de defender os direitos de crianças e adolescentes.

Especificamente quanto ao art. 110, trata-se de uma imposição jurídica de estender os direitos processuais básicos aos adolescentes, limitando os poderes do juiz. Enfim, de conservar para os adolescentes infratores, acima de tudo, sua identidade enquanto cidadãos.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

 ARTIGO 110/LIVRO 2 – TEMA: GARANTIAS PROCESSUAIS 
Comentário de Péricles Prade
Advogado/São Paulo

Sendo eleito como garantia processual de natureza penal, enfaticamente, tal como contemplado no art. 110 (mas que, em evolução, garante a própria realização da justiça), o princípio do devido processo legal constitui literal reprodução do inc. LIV do art. 5°da CF, fazendo expressa referência, portanto, apenas à privação da liberdade. Justifica-se a exclusão quanto à privação dos bens porque, via de regra, o adolescente não os possui. Além do mais, quando os possua, o fato de o Estatuto não se referir a eles é irrelevante se o preceito constitucional, como sabido, também o alcança. A respeito desse tópico, aliás, sobra razão a Nagib Slaibi Filho ao alertar que “o princípio do devido processo legal, formal e material, é imperativo constitucional para qualquer processo, judicial ou administrativo, inclusive aqueles referentes a atos infracionais praticados por menores” (cf. Anotações à Constituição de 1988 – Aspectos Fundamentais, Rio, Forense, 1989, p. 234).

Esse princípio é conhecido pela fórmula due process of law – adotada nas emendas 5ª e 14ª à Constituição americana de 1787 -, cuja origem, porém, remonta à Carta Magna inglesa de 1215, que, no final de seu art.39, se utiliza da locução per legem terrae (aquela foi redigida em Latim), mais tarde traduzida para law of land, correspondendo à expressão “lei da terra”, no Direito Medieval saxônio, para registrar serem vinculadas as eventuais limitações a direitos às regras comuns por todos aceitas, em de corrência dos precedentes fáticos e judiciais. O termo due process of law,a bem da verdade histórica, acabou sendo reconhecido na Inglaterra, já em 1354, quando, sob o reino de Eduardo III, o Parlamento inglês editou o Statute of Westminster of the Liberties of London, substituindo a locução originária per legem terrae por due process of law. Chegou a anteceder a própria expressão cunhada pela Constituição dos Estados Unidos da América, tendo-se projetado da Grã-Bretanha para as colônias inglesas, que em várias Cartas e Declarações utilizaram-na.

Esse princípio é inserido na Constituição de 1988 e invocado, quase ipsis litteris, pelo art. 110 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Convém lembrar, porém, pela voz de José Afonso da Silva, “que o princípio do due process of law não esteve propriamente ausente no nosso Direito Constitucional. Ele emergia de algumas normas de garantia do processo e do direito de segurança, inscritas entre os direitos e garantias individuais. Seu reconhecimento dependia de pesquisa no texto constitucional e de construção doutrinária. Agora, ele está expresso” (cf. “Prefácio” à obra O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil, de Carlos Castro, Rio, Forense, 1989, p. XV). Aplicava-se, mas com temperamentos. O princípio da ampla defesa, abrangido pela cláusula, p. ex., era invocado à época da Constituição anterior em relação ao processo criminal, sendo inaplicado, com freqüência, no tocante ao processo civil.

A expressão, conforme a lição de Pinto Ferreira, “significa o direito a regular curso de administração de justiça pelos juizes e tribunais. A cláusula constitucional do devido processo legal abrange, de forma compreensiva: a) o direito à citação, pois ninguém pode ser acusado sem ter conhecimento da acusação; b) o direito de arrolamento de testemunhas, que deverão ser intimadas para comparecer perante a Justiça; c) o direito ao procedimento contraditório; d) o direito de não ser processado por leis ex post facto; e) o direito de igualdade com a acusação; f) o direito de ser julgado mediante provas e evidência legal legitimamente obtidas; g) o direito ao juiz natural; h) o privilégio contra a auto-incriminação; i) a indeclinabilidade da prestação jurisdicional, quando solicitada; j) o direito aos recursos; 1) o direito à decisão com eficácia de coisa julgada” (grifamos – cf. Comentários à Constituição, I/175 e 176, São Paulo, Saraiva). Outros direitos ainda poderiam ser relacionados, tamanha é a teia desse princípio exigente de rigorosa obediência às formalidades.

Deve-se ter em consideração, neste ponto, o ensinamento de Celso Bastos, ao expor que “o direito ao devido processo legal é mais uma garantia que propriamente um direito.Por ele visa-se a proteger a pessoa contra a ação arbitrária do Estado. Colima-se, portanto, a aplicação da lei. O princípio se caracteriza pela sua excessiva abrangência e quase que se confunde com o Estado de Direito. A partir da instauração deste, todos passaram a se beneficiar da proteção da lei contra o arbítrio do Estado” (grifamos – cf. Comentários à Constituição Federal, 1° ed., II 261, São Paulo, Saraiva). Nessa perspectiva, restrição alguma à defesa pode ser feita ao adolescente, pondo por terra a velha polêmica de que, por força do interesse absoluto do menor, ao contraditório seria ininvocável.

Irradia-se o princípio do art. 110 às hipóteses do art. 111 do Estatuto da Criança e do Adolescente, notando-se, p. ex., que seus incs. I, IIe III (v. art. 227, IV, da CF) o justificam sob o ponto de vista formal.

O art.110, enfim, não só se funda na Constituição, tendo em mira a adoção dessa cláusula também no plano do Direito Internacional, pois a regra mínima 14.1 de Beijing assevera que “todo menor infrator cujo caso não tenha sido objeto de remissão (de acordo com a regra 111) será apresentado à autoridade competente (Juizados, Tribunais, Junta, Conselho etc.), que decidirá de acordo com os princípios de um processo imparcial e justo” (grifamos). Trata-se, assim, de preceito universal que não poderia ser desprezado pelo Brasil.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
 

ECA comentado: ARTIGO 110/LIVRO 2 – TEMA: Garantias processuais
ECA comentado: ARTIGO 110/LIVRO 2 – TEMA: Garantias processuais