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ECA: ARTIGO 115/LIVRO 2 – TEMA: ADVERTÊNCIA
 
Comentário de Miguel Moacyr Alves Lima
Ministério Público/Santa Catarina
 
 
1. O termo “advertência” deriva do latim advertentiva e significa o mesmo que admoestação, observação, aviso, adversão, ato de advertir.
De todos os significados que o termo assume na linguagem natural, o Estatuto da Criança e do Adolescente captou o e “admoestação”, “repreensão”, “censura”, acentuando a finalidade pedagógica.

2. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a aplicação de “advertência” às seguintes situações: a) ao adolescente, no caso da prática de ato infracional (art. 112, I, c/c o art. 103); b) aos pais ou responsáveis, guardiães de fato ou de direito, tutores, curadores etc. (art. 129, VII); c) às entidades governamentais ou não governamentais que atuam no planejamento e na execução de programas de proteção e sócio-educativos destinados a crianças e adolescentes (art. 97, I, “a”, e II, “a”).

Na primeira hipótese trata-se de medida sócio-educativa; nas demais, constitui medida de proteção.

3. De modo geral, o “ato de advertir”, no sentido de “admoestar”, contém em sua estrutura semântica um componente sancionatório. Ainda quando externada informalmente, toda “advertência” representa, em última instância, um ato de autoridade e pressupõe que, numa dada relação social, alguém detém a faculdade de se impor a outrem (orientando, incutindo valores, induzindo comportamentos etc.), mesmo contra a vontade daquele contra quem ou em relação a quem essa faculdade é exercida. Queiramos ou não, esse aspecto constrangente do ato de advertir, como fenômeno social de imposição e de comando, de condução ou de orientação, é um dado da realidade. Não pode nem deve ser objeto de ocultação ou disfarce, sob pena de alienar-se sua verdadeira compreensão e, conseqüentemente, sua adequada operacionalização como modalidade de medida sócio-educativa. Podem-se abrandar os gestos, o tom da voz, mas nada disso implicará que a advertência deixe de ser uma técnica de controle social, praticada no interior de uma relação de poder específica. Por mais que se deseje mascarar o reconhecimento de que o “ato de advertir” contém um suporte repressivo/opressivo, não é possível recusar plenamente a idéia e a observação de que ele traduz um fato sócio-político, ou seja, a materialização do poder na sociedade e do poder da sociedade sobre os indivíduos. Aparentemente inofensiva, a “advertência”, como qualquer outra efetivação desse poder social, que se manifesta de forma difusa, não deixa de ser uma forma sutil e eficaz de inserção, exclusão, reinserção, reexclusão, e, portanto, também de externação de preconceitos, discriminações e constrangimento, nem sempre legítimo, dos indivíduos em face dos pontos de vista do sistema social dominante (visão do mundo, crenças, valores, condutas “socialmente úteis” etc.). A despeito disso, via de regra, os discursos disciplinares encaram a advertência como algo banal, singelo. Na análise e aplicação do art. 115 do Estatuto da Criança e do Adolescente devemos nos prevenir contra esse simplismo hermenêutico, que, além de constituir temerário exercício de abstração, bem ao gosto da Dogmática da forma (a Dogmática da forma caracteriza-se por considerar o Direito como um mundo de puras normas racionais, lógico-abstratas, isto é, desconectadas dos conteúdos sócio-econômicos da realidade social de que emergem), pode propiciar a banalização da práxis jurídico-administrativa do Estatuto no que concerne à primeira experiência ou aos contatos de menor gravidade do adolescente que comete um ato infracional com as instituições e os agentes incumbidos do atendimento especializado a que ele tem direito. Essa simplificação ou banalização da advertência e de seus efeitos será um equívoco tanto mais grave quanto mais frágil e sensível for a estrutura psicológica e quanto mais problemática for a situação vivenciada pelo adolescente. Episódio ocorrido há pouco tempo com um aluno do Colégio Militar do Rio de Janeiro pode ser um referencial ilustrativo destas observações. Referimo-nos ao caso do estudante que se suicidou por não suportar os efeitos morais (psicológicos) de uma punição disciplinar de “somenos importância” – a suspensão de freqüência às aulas por um curto período – e a vergonha de lhe ter sido atribuída a prática, tão comum, da “cola escolar”. Nesse episódio, a subestimação do potencial repressivo e estigmatizador de uma “singela punição” na pessoa do indisciplinado, socorrida pelo discurso de legitimação da ordem lesada, conduziu a conseqüências irreparáveis. O exemplo relatado pode ser raro, mas não deve ser esquecido.

Em vista disso, devemos nos prevenir contra a tentação de transformar a advertência prevista no art. 115 do Estatuto da Criança e do Adolescente em mera rotina ou num ato de mera burocracia.

Nesse sentido,é preciso levar-se em conta que o adolescente subcensura é titular do direito subjetivo à liberdade, ao respeito e à dignidade (arts. 15 a 18 do ECA), é alguém que se apresenta na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 6° do ECA) e que não pode ser exposto ou submetido, por quem quer que seja, a qualquer tipo de crueldade (física ou moral), violência (física ou moral) e opressão (física ou moral), nos termos do art. 5° do Estatuto. Por outro lado, coerentemente com a doutrina da proteção integral, que preside o Estatuto, e para que se atendam as exigências ético-jurídicas desse paradigma, o tratamento, tanto teórico quanto prático, das medidas sócio-educativas, entre as quais se insere a advertência, pressupõe que sejam levadas em conta as contribuições da Psicologia Evolutiva e da Psicologia Educacional no que respeita à concepção que se deva ter do adolescente e de suas peculiaridades como pessoa em desenvolvimento. Do ponto de vista da Psicologia Evolutiva, a adolescência é um “período crítico de definição da identidade do eu cujas repercussões podem ser de graves conseqüências para o indivíduo e a sociedade… Representa uma fase crítica do processo evolutivo em que o indivíduo é chamado a fazer importantes ajustamentos de ordem pessoal e de ordem social. Entre esses ajustamentos temos a luta pela independência financeira e emocional, a escolha de uma vocação e a própria identidade sexual” (Merval Rosa, Psicologia da Adolescência, coleção “Psicologia Evolutiva”, 2a ed., III/43 e 44, Petrópolis-RJ, Vozes, 1982). Significa uma fase de mudanças significativas na fixação do caráter e na afirmação da personalidade do indivíduo, tais como: a) a elevação do tônus emocional, com intensidade dependente da rapidez com que as alterações físicas e psicológicas se dão na experiência do indivíduo; b) o amadurecimento sexual, que acontece quando o adolescente ainda se encontra inseguro com relação a si mesmo e experimenta o sentimento de instabilidade, que tem como causa importante a ambigüidade do tratamento que o “mundo adulto” lhe destina; c) mudanças corporais; d) mudanças no sistema de valores. “A adolescência é também um período em que o indivíduo tem que lutar contra o estereótipo social e contra uma auto-imagem distorcida dela decorrente. A cultura tende a ver o adolescente como um indivíduo desajeitado, irresponsável e inclinado às mais variadas formas de comportamento anti-social. Por sua vez, o adolescente vai desenvolvendo uma auto imagem que reflete, de alguma forma, esse estereótipo da sociedade. Essa condição indesejável ordinariamente cria conflitos entre pais e filhos, entre o adolescente e a escola, entre o adolescente e a sociedade em geral” (Merval Rosa, ob. cit., 1II/45 e 46). Além disso, a adolescência é uma fase evolutiva de grandes utopias que, no geral, tendem a tomar mais problemática a relação do adolescente com o ambiente social, porquanto sua pauta de valores e sua visão crítica da realidade, ora intuitiva ou reflexiva, acabam destoando da chamada ordem instituída.

Sob a ótica da Psicologia Educacional, é preciso considerar que a adolescência corresponde, em condições normais, ao desenvolvimento da capacidade intelectual, que ocorre como necessidade de o organismo em evolução manter o equilíbrio cognitivo em face do ambiente em que o adolescente vive. Nesse caso, as experiências concretas do indivíduo são de fundamental importância para lhe fornecer os materiais necessários à compreensão da realidade e as condições favoráveis à absorção dos novos conhecimentos que o progresso científico e tecnológico produzem em grande volume e intensidade. Segundo Piaget, é nessa fase da vida humana que se desenvolve a capacidade intelectual para operações formais, possibilitando o raciocínio lógico-abstrato. Esse amadurecimento intelectual, que representa o ponto alto do desenvolvimento cognitivo do ser humano, ao lado do desenvolvimento biológico e psicológico, não acontece a partir de a prioris, mas depende das interações do indivíduo com o meio social.

A essa altura parece-nos imprescindível observar, como o faz Paulo Freire (Educação e Mudança, 12ª ed., trad. de Moacir Gadotti e Lílian Lopes Martin, Rio, Paz e Terra, 1983, pp. 27-41), que, em suas interações com o meio social, o indivíduo humano se caracteriza como um ser de relações, e não de mero contato. Em vista disso, ele necessita e é capaz de sair de si mesmo, projetando-se nos outros, transcendendo-se, estando no mundo e com o mundo, num complexo de interações que não podem ser nem meramente contemplativas, nem meramente adaptativas, mas que devem ser reflexivas e conseqüentes, interventivas e responsáveis. A educação, vista como processo de socialização, ou seja, como forma de inserção e de identificação do indivíduo com o meio social, deve estar comprometida com a idéia de que o “educando” não é o seu objeto de intervenção modeladora, mas o seu sujeito. Um sujeito capaz de amar e de ter esperança de construir-se e de construir o seu mundo. Por isso, a educação deve corresponder a um ato comunicativo (um diálogo) amoroso, humilde, crítico, esperançoso, confiante e criador.

Ao nosso ver, é esse modelo pedagógico que deve estar implícito no caráter “sócio-educativo” das medidas aplicáveis a adolescentes infratores, como a advertência, sob pena de enfatizarmos o aspecto repressivo/opressivo que tais medidas contêm implicitamente.

O Código de Menores (Lei 6.697/79) foi alvo de muitas e justas críticas. Correspondia, mesmo, a um sistema legal estigmatizante, visto que sua categoria básica – a situação irregular – separava os “seus” menores dos demais, considerando-os em estado de patologia social em face de um sistema social “saudável”. Esse equívoco principio lógico tinha como conseqüência a construção de um sistema social/estatal interventivo, de detenção e enjaulamento (Deodato Rivera, “Informe de um plantão voluntário na Delegacia de Menores do Distrito Federal, em dezembro de 1987”, in Brasil. Criança. Urgente, 1ª ed., I/122e 123, coleção “Pedagogia Social”, São Paulo, Columbus, 1989), de considerável parcela de crianças e adolescentes, que, em verdade, não passavam de vítimas da falência de políticas sociais básicas. De nada terão valido as críticas lançadas à lei ab-rogada se não se empreender, na vigência do Estatuto, uma mudança radical das atitudes mentais e operativas, mormente no tratamento com os adolescentes infratores. Via de regra, eles são assemelhados ao delinqüente comum, com a agravante de que, quase sempre, são objeto de maior rejeição ou de maior censura na comparação com os “delinqüentes adultos”. Conseqüentemente, os seus direitos fundamentais são tratados com maior descaso, sendo alvos de freqüentes violações. O Estatuto, filiado a um sistema político-jurídico explicitamente protetivo e humanizador, não apenas recomenda respeito à liberdade e à dignidade física e moral de seus beneficiários, mas chega ao ponto de criminalizar qualquer conduta que submeta a criança e o adolescente a vexame ou constrangimento, por parte de quem sobre ele exerça autoridade, guarda ou vigilância (art. 232). É preciso que se preste muita atenção à lógica protetiva do Estatuto, evitando-se que o exercício do poder corretivo descambe para um disfarçado abuso de autoridade.

No caso da advertência, como de outras medidas sócio-educativas, o grande problema será adequar o regime de autoridade, que é um pressuposto do processo educativo, com o regime de direitos e liberdades do adolescente, pois será preciso superar a tendência que estimula quem usa de autoridade a exceder-se a limites incontroláveis; será preciso promover o equilíbrio entre a disciplina e a liberdade. O caráter sócio-educativo das medidas aplicadas ao adolescente que comete um ato infracional exige que a autoridade se posicione como um verdadeiro educador, facilitando o crescimento do educando, por mais trivial que se lhe afigure a oportunidade. Para isso, deverá se preocupar em propiciar ao adolescente condições para que descubra e desenvolva suas potencialidades, a partir de processos de estímulo de construção de uma auto-imagem positiva. Levando-se em conta as peculiaridades do caso concreto, as condições sócio-culturais do adolescente, seu nível de compreensão da realidade e da situação vivenciada, seu estado emocional, sua faixa etária, a ação sócio-educativa deverá funcionar como um pêndulo em equilíbrio entre os pólos da correção e do estímulo. O adolescente deverá ser atingido pela medida aplicada, mas não deverá ser desestimulado quanto ao seu valor pessoal, sua condição de sujeito de direitos.

4. A lei diz que a advertência aplicada ao adolescente infrator exige a prova da materialidade dofato e indícios suficientes de autoria (parágrafo único do art. 114). Com isso, estão excluídas as situações que acarretem “mera suspeita”, visto que a autoridade deverá contar com elementos de convicção, embora não plenamente concludentes, mas fortemente indicativos, sobre a autoria do ato infracional. Afinal de contas, a despeito de sua aparente simplicidade, a advertência constitui urna interferência na esfera do jus libertatis do adolescente, e seu caráter sócio-educativo determina sua vinculação ao princípio da justa causa.

Escrevendo sobre a matéria, Paulo Lúcio Nogueira (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: Lei n. 8.069, de 13 de Julho de 1990, São Paulo, Saraiva, 1991, pp. 141 e 145) afirma que a “imposição da advertência dispensa perfeitamente a sindicância ou o procedimento contraditório, já que deve ser imposta mediante o boletim de ocorrência elaborado pela autoridade policial ou informação do comissário”, e que a advertência é a primeira medida prevista a ser apl1cada ao adolescente que pratique ato infracional, mas independe da prova da autoria e da materialidade para ser imposta.

Não podemos concordar com essas teses. Em primeiro lugar, entendem os que, embora a advertência possa vir a ser aplicada no primeiro contato com o sistema de Justiça da Infância e da Juventude, na audiência de apresentação ao órgão do Ministério Público (art. 179 do ECA), nada impede que decorra do procedimento apuratório do ato infracional, através do respectivo procedimento contraditório. Dessa forma, não se pode estabelecer a dispensa da apuração do ato infracional como regra de proceder. Em segundo lugar, a afirmação de que a medida pode ser imposta independentemente da prova da materialidade do fato contraria não só o espírito do Estatuto, um sistema jurídico edificado sobre o princípio do respeito aos direitos fundamentais dos seus destinatários, mas também a exigência expressa do parágrafo único do seu art. 114.

Por fim, observamos que a advertência, na modalidade de medida sócio-educativa, deve se destinar, via de regra, a adolescentes que não registrem antecedentes infracionais e para os casos de infrações leves, seja quanto à sua natureza, seja quanto às suas conseqüências. Poderá ser aplicada, pelo órgão do Ministério Público, antes de instaurado o procedimento apuratório, juntamente como beneficio da remissão, e pela autoridade judiciária,no curso da instrução do procedimento apuratório do ato infracional ou na sentença final.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury 

ECA comentado: ARTIGO 115 / LIVRO 2 – TEMA: Advertência
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