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ECA: ARTIGO 120 / LIVRO 2 – TEMA: REGIME DE SEMILIBERDADE

Comentário de Alessandro Baratta
Universidade de Saaeland, Alemanha

O regime de semiliberdade é a medida mais restritiva da liberdade pessoal depois da internação. Semiliberdade e internação são as únicas medidas, entre aquelas previstas para o adolescente infrator no art. 112, que implicam a institucionalização. A semiliberdade faz parte das medidas sócio-educativas para as quais o art. 114 requer as plenas garantias formais em relação à apuração da infração e à igualdade do adolescente na relação processual. Tais garantias são estabelecidas nos arts. 110 e 111, em plena relação processual com o art. 5°, LV, da CF e com os princípios estabelecidos na matéria das Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores de 1984 (Regras de Beijing) e no art. 40 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989. O processo pode ser excluído, suspenso ou extinto, tratando-se daquelas medidas, somente através da concessão da remissão por parte do representante do Ministério Público ou por parte do juiz.

À semiliberdade, objeto deste único artigo da seção correspondente, aplicam-se as normas e princípios enunciados na sucessiva seção VII, na qual mais detalhadamente regula-se o regime de internação.

Trata-se de uma técnica legislativa adequada, baseada no fato de que, no confronto entre duas medidas, prevalece o elemento de identidade sobre o de diferença. De fato, apesar da limitação quantitativa, trata-se, ainda naquela prevista pelo art. 120, de uma medida restritiva da liberdade e institucionalizante. Esta qualidade comum é levada em conta pelo legislador, que em várias circunstâncias a considera como elemento discriminatório entre estas duas e todas as outras medidas (sócio-educativas ou de proteção) previstas pelo art. 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a finalidade de limitar-lhe a aplicação e as conseqüências no interesse e para proteção do menor. Que a diferença entre as duas medidas é mais quantitativa do que qualitativa resulta também do fato de que no caso da internação como no de semiliberdade é prevista a realização de atividades externas,com a única diferença de que, no primeiro caso, e não no segundo, o juiz pode impedir a realização de tais atividades, através de proibição expressa (art. 121, § 1°).

É mister levar em conta a finalidade limitativa e de proteção mencionada acima, como ratio comum da disciplina das duas medidas, assim como também se precisa levar em conta a maior gravidade “sancionatória” da internação para resolver o delicado problema interpretativo deixado em aberto pelo legislador ao regulamentar a semiliberdade com a remissão explícita à normativa da internação através do § 2° do presente artigo. A remissão é condicionada pela cláusula (elástica) “no que couber”. A uma interpretação literária do § 2°, parece poder-se, sem mais, estabelecer que a remissão, mesmo se operada contextualmente com a disposição relativa à duração da medida (que é adotada sem indicação preventiva de término), não está limitada às disposições do art. 121 que disciplinam a convalidação, o limite máximo de duração da internação e o procedimento para a liberação (§§ 2° a 6°),mas se estende, com a condição acima indicada, a todas as normas que dizem respeito diretamente à internação, sejam elas contidas na seção VII ou alhures. De resto, querendo-se defender uma interpretação restritiva da remissão, dever-se-ia recorrer a uma extensão analógica, para preencher as lacunas que neste caso surgiriam na disciplina da semiliberdade. O resultado, como veremos, seria idêntico.

A necessidade de considerar a remissão do § 2° na sua maior extensão (ou de proceder a uma ampla extensão analógica) é confirmada pela manifesta incongruência que resultaria se considerássemos reservados à disciplina da internação determinadas normas e princípios nela contidos. Seria manifesta incongruência não aplicar à semiliberdade, p. ex., a norma que atribui à equipe técnica a competência para decidir sobre o conteúdo das atividades externas (art. 121,§ III),ou o princípio do “respeito da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” (art. 121, caput).

Qual deve ser, entretanto, o critério para estabelecer a extensão e os limites da remissão? Na base das indicações acima referidas sobre a ratiocomum à disciplina das duas medidas, este critério será constituído pelas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis à integração social do adolescente e pela maior gravidade “sancionatória” da internação em relação à semiliberdade. Portanto, na dúvida, não se estenderão disposições desfavoráveis aos interesses e aos direitos do adolescente que possam ser consideradas peculiares da internação, considerada sua maior gravidade. Estender-se-ão todas as disposições favoráveis que não estejam claramente ligadas à finalidade de limitar a incidência “sancionatória”, peculiar e exclusiva desta medida. Esta parece ser a única maneira correta e adequada de concretizar a cláusula limitativa “no que couber”. Uma vez aceito este critério, chega-se às mesmas conseqüências práticas às quais se chegaria se, escolhendo um caminho interpretativo menos congruente com a letra da norma de remissão, se recorresse à extensão analógica.

Deve-se, portanto, considerar válido também para a semiliberdade o limite de aplicabilidade estabelecido para a internação com os incs. I, II e III do caput do art. 122 em relação à gravidade das infrações.O mesmo vale para o princípio de (rigorosa) subsidiariedade estabelecido no § 2° do mesmo artigo, bem como, obviamente, pelo disposto no art. 123 do Estatuto. Também as normas previstas para a tutela e no interesse do adolescente nos arts. 124 e 125 aplicam-se, quase todas, ao regime de semiliberdade.

No que diz respeito à natureza, à aplicabilidade e à duração, em geral, da medida, aplicam-se à semiliberdade os princípios de brevidade e excepcionalidade estabelecidos no art. 121. Valem, outrossim, as disposições contidas nos §§ 2°, 3°, 5° e 6° do mesmo artigo. Por outro lado, a remissão diz respeito ao § 4° só no que tange à obrigação ali estabelecida de liberação do adolescente ao término do período máximo de três anos, mas não no que tange à possibilidade, por parte do juiz, de decidir sobre a transição para uma outra medida (isto é, apenas a liberdade assistida) no momento de determinar a liberação por decorrência do prazo. Trata-se, de fato, de uma conseqüência não favorável aos interesses e aos direitos do adolescente, que deve ser considerada peculiar da medida de internação.

Pareceria poder-se argumentar o contrário, e admitir a possibilidade da “passagem”, aduzindo-se que as medidas previstas no Tít. III do Livro II não são medidas penais, pois se aplicam a um sujeito penalmente inimputável e têm uma finalidade exclusivamente sócio-educativa. Entretanto, tal argumentação não levaria em conta a diferença fundamental entre estas medidas e aquelas previstas nos arts. 98 e ss. Trata-se de uma distinção qualitativa com a qual, como se sabe, o Estatuto quis pôr um fim à aberrante comistão, instituída pelo Código de Menores, entre “situação irregular” e realização objetiva de figuras delitivas. Diferentemente das medidas de proteção, que representam uma resposta a situações de risco e não são aplicadas através de um procedimento judicial (exceto na hipótese do inc. VII do art. 112), as medidas sócio-educativas, e, portanto, também a liberdade assistida, representam, mesmo fora de uma imputação de responsabilidade penal, uma conseqüência jurídica ligada à apuração da realização de um fato sobre o qual recai um julgamento “objetivo” de desvalor social – e, portanto, implicam uma limitação de direitos. Por isso estão excluídas para menores de 12 anos, estão acompanhadas por um regime processual que visa a proteger o menor contra uma incidência arbitrária destas sobre a sua pessoa e são sempre “substituíveis”, e, deve-se acreditar, independentemente da gravidade da infração, por uma das medidas de proteção, em favor do adolescente e para melhor tutela do seu direito à integração social.

Mesmo sem seguir a opinião de alguns críticos do Estatuto, os quais consideraram que, com o retomo à realização de figuras delitivas e com o regime processual previsto para estas medidas, o Estatuto teria reintroduzido uma concepção penal no novo Direito de Menores – opinião que, sem dúvida, não respeita o espírito do Estatuto -, não se pode negar o caráter “sancionatório”, embora não penal, delas, não obstante a finalidade sócioeducativa. O que exclui a extensão da disposição aqui analisada, à maneira do critério acima assumido. Portanto, não parece possível a “passagem” da semiliberdade para a liberdade assistida nem, menos ainda, para nenhuma outra das medidas previstas no art. 112, I a IV, depois que tiver transcorrido o período máximo de três anos. Parece, por outro lado, possívela passagem da semiliberdade para a liberdade assistida no caso de decisão judicial que faça cessar a primeira medida antes da decorrência do período máximo de duração desta (mas somente nos limites da duração máxima total de três anos), uma vez que se trata de uma situação mais favorável ao adolescente. Está salva, obviamente, a aplicação, sucessiva à cessação, por qualquer razão, da semiliberdade, de medidas de proteção. Neste caso, o título de aplicação não é o inc.VII do art. 112, mas aquele “natural” das medidas de proteção.

Do ponto de vista da política de implementação do artigo em exame no espírito do Estatuto, podem-se fazer as seguintes considerações. Em primeiro lugar, cabe ressaltar a grande importância da segunda parte do caput, onde as atividades externas estão previstas de maneira completamente desvinculada da jurisdição, como objeto de decisão da equipe técnica, exclusivamente inspirada à finalidade da integração social do menor. A mesma importância deve ser atribuída à segunda parte do § 1°, onde a obrigação-direito de escolarização e profissionalização do adolescente está ligada ao dever da autoridade de realizar estas funções fora da instituição, utilizando-se os recursos existentes na comunidade. Isto deve significar duas coisas: primeiro, a inserção do adolescente em regime de semiliberdade em instituições escolares e de formação profissional “normais”, excluindo-se terminantemente a criação de circuitos especiais para os adolescentes infratores. Em segundo lugar, que, assim como as outras atividades externas, também e sobretudo a freqüência à escola deve servir para a integração do menor na sua comunidade natural, isto é, na comarca de origem. Deve-se de fato estender à semiliberdade o disposto no art. 185, onde, excluída a possibilidade de realizar a medida de internação em um estabelecimento carcerário, é definido como destinação normal do adolescente o encaminhamento a um estabelecimento com as características requeridas pelo art. 123 e situado em sua comarca. Isto indica muito claramente que a vontade da lei está dirigida, também no caso de restrição da liberdade do menor, para o favorecimento, na medida do possível, da integração em sua comunidade e, através dela, na sociedade. A integração na comunidade e na sociedade é o fulcro da nova disciplina do adolescente infrator, que deve permitir reverter, finalmente, a injusta praxe da criminalização da pobreza e da falta de meios. Levando em conta o espírito do Estatuto, e mesmo em situação de extrema carência estrutural, que não permite a realização nem dos mesmos pressupostos logísticos para a implementação dos arts. 123 e 185, a institucionalização, quer na forma da internação, quer naquela de semiliberdade, deve ser considerada uma resposta em tudo excepcional, mesmo no caso de graves infrações do adolescente, e normal deve ser considerada, em todos os casos, a aplicação de outras medidas sócio-educativas, e, principalmente, de proteção, aptas a favorecer a integração social do adolescente infrator e a compensação de gravíssimos déficits econômicos e de atenção familiar e social, dos quais ele é normalmente vítima, como ocorre ainda hoje, vigorando o Estatuto para 25 milhões de crianças e adolescentes no Brasil.

Deste ponto de vista, o artigo examinado, a disciplina de medidas de proteção e sócio-educativas e o Estatuto inteiro representam um grande desafio político e de civilização para a Nação e o mundo todo: o desafio de lutar para a criação de condições materiais e jurídicas que tomem possível para todas as crianças e os adolescentes brasileiros uma vida digna da pessoa humana; isto é, as formas adequadas e justas de produção e distribuição da riqueza, que correspondem à altíssima mensagem lançada ao País e ao mundo pelo art. 227 da CF brasileira.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

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