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ARTIGO 194/LIVRO 2 – TEMA: INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA

Comentário de Ademir de Carvalho Benedito
Juiz de Direito/São Paulo

A primeira idéia que se deve fixar na leitura deste artigo é a que conceitua procedimento, palavra que não pode mais ser confundida com processo.

Moacyr Amaral Santos assim se manifesta a respeito do tema (Direito Processual Civil, 3ª ed., 2/81 e 82, Max Limonad, 1969): “Chegou a ocasião de distinguirmos processo e procedimento, vocábulos na linguagem corrente, e até mesmo em obras especializadas, usados como sinônimos. Se praticamente não se censura a sinonímia, aconselha a boa técnica a distinção.

“Processo é o complexo de atividades que se desenvolvem tendo por finalidade a provisão jurisdicional; é uma unidade, um todo, e é uma direção no movimento. É uma direção no movimento para a provisão jurisdicional. Mas o processo não se move do mesmo modo e com as mesmas formas em todos os casos; e ainda no curso do mesmo processo pode, nas suas diversas fases, mudar o modo de mover ou a forma em que é movido o ato. Vale dizer que, além do aspecto intrínseco do processo, como direção no movimento, se oferece o seu aspecto exterior, como modo de mover e forma em que é movido o ato. Sob aquele aspecto fala-se em processo, sob este fala-se em procedimento.

“Assim,há procedimento no processo.”Procedimento- escreve Calamandrei -indica mais “propriamente o aspecto exterior do fenômeno processual”.

“Exatamente esse o ensinamento de João Mendes Jr., geralmente reproduzido”. pelos escritores patrícios. Depois de chamar a atenção para o sufixo nominal mentum, que se contém no vocábulo procedimento, e que, “em sua derivação etiri1àlógica, exprime os atos no modo de fazê-los e na forma em que são feitos”, o insigne Processualista assinala claro a distinção: “Uma coisa é o processo; outra é o procedimento; o processo é uma direção no movimento; o procedimento é o modo de mover e a forma em que é movido o ato”. Ou nesta outra síntese: “O processo é o movimento em sua forma intrínseca; o procedimento é esse mesmo movimento em sua forma extrínseca, tal como se exerce pelos nossos órgãos corporais e se revela aos nossos sentidos”.

“Procedimento é, pois, o modo e a forma por que se movem os atos no processo”.

Assim também ensina o Prof. Cândido Rangel Dinamarco, em sua obra Fundamentos do Processo Civil Moderno, em que expõe, às pp. 157 e 158, da seguinte maneira o seu pensamento (Ed. RT, 1986):

“Existe muito cuidado, da parte dos processualistas modernos, no uso do vocábulo processo. Já há um século, obra merecidamente festejada (refere-se o autor à clássica monografia de Oskar Von Bülow, Die Lehre von den Processeinreden und die Processvoraussetzungen) denunciava vício em que incorria a doutrina anterior, de conceituar o processo como a mera marcha, ou avanço gradual, em direção ao provimento jurisdicional demandado. Defini-lo assim é reduzi-lo a simples procedimento, quando o processo é uma entidade complexa, que deve ser encarada sob o dúplice aspecto da relação entre os seus atos (procedimento) e também da relação entre seus sujeitos (relação jurídica processual). O processo é um verdadeiro método de trabalho, através do qual busca o Estado os objetivos institucionais de suas funções básicas, contando os seus órgãos, para tanto, com a cooperação de uma ou mais pessoas interessadas. Na linguagem dos processualistas em geral, não há processo quando não se cuida do exercício da função jurisdicional, uma vez que este é havido como instrumento da jurisdição.

“O Código de Processo Civil emprega a palavra “processo” 209 vezes, seja no singular ou no plural, seja isoladamente ou em locuções como processo civil” (art. 1.211), “processo de conhecimento”, “processo de execução” ou “processo cautelar” (Livros I, IIe III). Tal emprego é feito com extremo cuidado e muito acerto, sendo mínimas as ressalvas que poderia o Código merecer quanto a isso.

“Quando se trata de designar a disciplina dos atos do processo, intrinsecamente ou em sua seqüência ou correlação, emprega o Código, adequadamente, o vocábulo procedimento: “procedimento comum”, “procedimento ordinário”, “procedimento sumaríssimo” (art. 272), “procedimentos especiais” (Livro IV), “tipos de procedimento” (art. 50, parágrafo único). Apesar de parecer óbvia, essa escolha representa bom progresso na terminologia processual brasileira, seja com relação ao nosso velho Código de 1939 (que falava em “processo ordinário”, “processos especiais” etc.; cf. seus arts. 291 e ss., 298 e ss. etc.), seja perante o Código de Processo Penal (“processos em espécie”, “processo comum” etc., arts. 394 e ss.).”

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 194, foi mais técnico, mais perfeito, do que a legislação anterior, a qual, ao estabelecer a forma para apuração das penalidades administrativas e a respectiva punição, usava as expressões “em processo próprio” e “nos autos de procedimento em curso”, confundindo a terminologia adequada, que é mesmo
“procedimento” (art. 110 do revogado Código de Menores).

Este procedimento especial, disciplinado pelos arts. 194 a 197 da Lei 8.069/90, visa a apurar infrações às normas de proteção à criança e ao adolescente e a imposição da respectiva penalidade administrativa. Esta vem prevista no capo11do tít. VII do Estatuto, em seus arts. 245 a 258, correspondendo cada dispositivo a um tipo de infração, e a cada tipo uma determinada espécie de penalidade, em extensões variáveis. Outras infrações às normas de proteção à criança e ao adolescente estão tipificadas no Estatuto, mas foram por ele conceituadas( como crimes, nos seus arts. 228 a 244 (tit. VII, capo I, seção II),e sua apuração e a imposição da pena correspondente se operam pelas normas de Direito Processual Penal.

As penalidades administrativas são: a) multa; b) apreensão de publicação; c) suspensão de programação de emissora de rádio ou televisão, ou de publicação de periódico; d) pagamento das despesas de retomo do adolescente ao seu domicílio quando não apresentado aquele, em cinco dias, à autoridade judiciária do local em que deva prestar serviços domésticos; e) fechamento de estabelecimento; t) suspensão de espetáculo artístico; g) apreensão de revistas e publicações em geral que infrinjam os arts. 78 e 79 do Estatuto.

Para imposição dessas penalidades deverá a autoridade judiciária valer-se, obrigatoriamente, do procedimento legal, estabelecido nos arts. 194 a 197 do Estatuto, garantindo-se a quem se atribua a infração o direito ao contraditório e à ampla defesa, como prescrito no art. 5°,LV,da CF.

Estão legitimados a requerer a investigação do eventual fato infringente, e a conseqüente punição administrativa do seu autor, o Ministério público, o Conselho Tutelar e qualquer servidor efetivo ou voluntário credenciado.

Quanto ao Ministério Público, a legitimidade para representar ao juiz da infância e da juventude é do promotor de justiça que estiver em exercício junto à respectiva Vara, de acordo com a Lei Orgânica da Instituição, como deixam claro os arts. 200 e 201, X, ambos desta lei. E importante anotar que, se o procedimento não for instaurado por iniciativa do Ministério Público, o.órgão atuará necessariamente na defesa dos direitos e interesses disciplinados pela referida lei, tendo vista dos autos sempre depois das partes, sendo-lhe facultadas a produção de provas e a formulação de recurso (art. 202 do Estatuto).

Relativamente ao Conselho Tutelar, entidade inédita, criada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pode-se dizer que sua intervenção nesse campo poderá ocorrer de duas formas: a) noticiando ao Ministério Público fatos que constituam infrações administrativas às normas de proteção à criança e ao adolescente (art. 136, IV, do Estatuto); b) representando diretamente à autoridade judiciária, visando à apuração daqueles fatos e à aplicação da penalidade.

Como órgão não jurisdicional encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, e sendo formado por cidadãos eleitos por aquela, terá o Conselho maior agilidade e maior possibilidade de identificar os casos de infração às referidas normas, aumentando bastante o poder de vigilância sobre atividades e pessoas potencialmente infratoras. Deve-se, aqui, ressaltar que a competência territorial do Conselho Tutelar é sempre municipal, mas em um mesmo Município poderá haver mais de um Conselho, fixando-se, então, a respectiva área de atuação por região (zonas, bairros etc.), conforme prescrito pelo art. 132 da Lei 8.069/90.

Tanto o Ministério Público como o Conselho Tutelar deverão, para movimentar a máquina judiciária, formular representação ao juiz da infância e da juventude, relatando os fatos que entendam infringentes, as circunstâncias que os caracterizam, qualificando seu autor, indicando os fundamentos jurídicos em que se baseiam, requerendo a aplicação das penalidades previstas, indicando provas e pedindo, por fim, a intimação do requerido para apresentar a defesa no prazo de 10 dias. Tratando-se de representação, a peça deverá atender, no que for cabível, ao que dispõem os arts. 39 e 41 do CPP, competindo a quem elaborá-la descrever o fato típico punível administrativamente, ensejando a descrição de conduta que não se enquadre entre as previstas nos arts. 245 a 258 da Lei 8.069/90 a rejeição imediata daquela, nos termos do disposto no art. 43, I, do CPP. As regras do processo penal e também do processo civil podem ser aplicadas subsidiariam ente ao procedimento aqui estudado, por disposição expressa do art. 152 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Alerte-se que a descrição falha do ato punível é fator impeditivo do exercício do direito de defesa pelo requerido. Nada impede, porém, que o juiz da infância e da juventude autorize, antes da intimação daquele, que se emende a peça vestibular.

Os meios de prova também deverão ser indicados na representação, mas poderão ser complementados por outros, que se mostrem necessários durante o desenvolvimento do procedimento instaurado, e após o oferecimento da defesa.

A extinção da punibilidade pela prescrição, ou qualquer outra causa, bem como a falta de legitimidade também são motivos ensejadores da rejeição imediata da representação, conforme dispõe o art. 43, em seus incs. II e III, do CPP, aplicável subsidiariamente também nesta passagem.

Quanto à legitimidade para provocar a instauração do procedimento, estão também nela incluídos os servidores efetivos do Poder Judiciário e os voluntários credenciados. Estes nada mais são do que os antigos comissários de menores, expressão, esta, não utilizada pela nova lei, mas que, tudo leva a crer, permanecerá sendo usada popularmente por muito tempo. São pessoas que se habilitam perante a Justiça da Infância e da Juventude para auxiliá-la das mais variadas maneiras, sem remuneração (em alguns Estados da Federação existe o cargo efetivo e remunerado de comissário de menores). Para poder atuar legalmente, e legitimamente, deverão estar credenciados pelo respectivo juiz de direito. Além disso, é óbvio, somente poderão atuar no limite jurisdicional do respectivo juízo ao qual servem.O mesmo se aplica aos servidores efetivos legitimados a iniciar o procedimento: são os funcionários com vínculo estatutário ou contratual com o Poder Judiciário, em exercício na Vara da Infância e da Juventude, e que só podem atuar perante a mesma. Tanto os servidores como os voluntários, para iniciar o procedimento, deverão lavrar auto de infração, o qual corresponde praticamente a uma constatação in loco da infração que está sendo cometida, a um flagrante. Não é por outra razão que a lei exige que o auto de infração seja lavrado no ato, e assinado, sempre que possível, por duas testemunhas. Este requisito não é essencial, não nulificando o ato se apuração, em especial porque esta atividade corresponde quase que a uma autuação de oficio do juízo, dada a vinculação funcional do autuante com o último.

O auto de infração deve descrever detalhadamente o fato típico infracional, seu horário, local, qualificar seu autor, indicar as provas.

Caso o auto não seja lavrado no momento da constatação, alternativa correta é a de se noticiar a ocorrência ao Ministério Público, para que este, após análise das circunstâncias relatadas, ofereça representação à autoridade judiciária.

A Lei 6.697/79 (Código de Menores) previa também o início do processo (na verdade, procedimento) através de portaria do próprio juízo, alternativa abolida pelo Estatuto vigente.

Quanto à competência para conhecer e julgar a representação e para aplicar a penalidade prevista, é ela atribuída à Justiça da Infância e da Juventude pelo art. 148, VI, desta lei, ressaltando-se que a competência específica para instauração do procedimento é da autoridade judiciária do local do fato típico praticado, aqui também por aplicação subsidiária do disposto no art. 69, I,do CPP. Quando, porém, a infração for cometida através de transmissão simultânea de rádio ou televisão que atinja mais de uma comarca, será competente para aplicação da penalidade a autoridade judiciária do local da sede estadual da emissora ou rede, tendo a sentença eficácia em relação a todas as suas transmissoras ou retransmissoras do respectivo Estado da Federação, conforme disposição contida no § 3° do art. 147 do Estatuto.

Nesse aspecto a nova lei não trouxe modificação relativamente ao Direito anterior, repetindo o § 1° do art. 111 da Lei 6.697/79, somente substituindo a palavra “processo” por “procedimento”, o que corresponde ao aprimoramento termino lógico já referido no comentário desenvolvido em relação à “cabeça” do art. 194. Como ali se falou, duas são as fórmulas para se dar início ao procedimento de apuração de infrações administrativa e imposição da respectiva penalidade: a representação, privativa do Ministério Público e do Conselho Tutelar; o auto de infração, privativo dos servidores efetivos e dos voluntários credenciados. Nessa última hipótese permite a lei a utilização de fórmulas impressas, desde que nas mesmas se especifiquem a natureza da infração e as suas circunstâncias. Na realidade, nada impede que também as representações sejam feitas em modelos impressos, se atendidos os requisitos formais e substanciais já indicados no comentário anterior. A utilização de impressos para autos de infração se justifica com maior razão porque estes são lavrados nos locais e nos momentos em que os fatos estão ocorrendo, às vezes na rua, às vezes em meio a um espetáculo artístico ou desportivo etc., o que dificulta, evidentemente, a redação de um texto, sendo preferível o uso de modelo pronto, com preenchimento de espaços necessários a indicação das peculiaridades: qualificação do infrator, descrição do fato, nomeação de testemunhas etc. Para melhor compreensão, segue (pp. 592/593) um modelo de auto de infração impresso, usado no Estado de São Paulo.

Como ficou dito anteriormente, o auto de infração corresponde a um flagrante: o funcionário ou voluntário constata a prática do ato contrário às normas de proteção à infância e adolescência e registra a irregularidade, apontando seu autor; se possível, indica testemunhas presenciais. Não aplica qualquer sanção, alerte-se. Porém, considerando essas características, deve o auto ser lavrado no momento da constatação, somente se aceitando a formalização posterior em razão de motivos relevantes, e que sejam certificados pelo próprio autuante. Esses motivos, logicamente, serão também investigados pela autoridade judiciária, e influenciarão no julgamento da própria conduta do requerido, da procedência ou não do que se atribui àquele.

A exigência tem duas finalidades básicas: aproveitar a instantaneidade da prova obtida no momento da constatação, evitando seu enfraquecimento, e, conseqüentemente, a impunidade, estimuladora de novas infrações; e impedir atitudes corruptas, ou de qualquer forma ilícitas e desonestas, de maus funcionários ou voluntários. Assim, se há infração, lavrase o auto, qualifica-se o agente ativo, indicam-se testemunhas; se não há, não se lavra. São raras as circunstâncias que impedem a elaboração do auto imediatamente após a constatação. A isso não leva, p. ex., a ausência no local do representante da pessoa jurídica infratora, o que somente retardará sua intimação. Por serem raros, os motivos do retardamento deverão ser certificados. E, se essa certidão não corresponder à verdade, seu
autor poderá responder pelo delito tipificado no art. 299 do CP.

Não.sendo lavrado, por justo motivo, no momento da constatação, o auto deverá ser elaborado na primeira oportunidade em que se tome possível, não se aceitando, assim, que o seja depois de dias de ocorrência. Quando muito, o retardamento aceitável não ultrapassará algumas horas, ou, excepcionalmente, um dia. Demora maior descaracterizará o ato, recomendando que a suposta infração seja noticiada ao Ministério Público, que, se entender cabível, representará ao juiz de direito, visando a instaurar procedimento de apuração e punição. A notícia ao promotor de justiça pode ser passada de forma simples, através de um relatório escrito, contendo descrição detalhada da ocorrência, qualificação do seu autor e indicação de provas, para viabilizar a representação, mencionando-se também as circunstâncias que impediram a lavratura do auto de infração.

Também aqui não há modificações em relação ao Direito anterior (Código de Menores, art. III, § 2°).

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury

ECA comentado: ARTIGO 194/LIVRO 2 – TEMA: INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA
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