ARTIGO 255/LIVRO 2 – TEMA: Infração Administrativa
Comentário de René Ariel Dotti
Universidade Federal do Paraná.
1. As infrações administrativas constituem o grande elenco de condutas ofensivas aos relevantes interesses de proteção integral da criança e do adolescente. E as sanções previstas para as diversas modalidades de ilícito caracterizam o arsenal de medidas destinadas à prevenção e à repressão dos fatos antijurídicos.
2. O presente dispositivo teve, entre suas fontes, a norma do art. 66 do Código de Menores revogado (Lei 6.697, de 10.10.79), que dispunha:
“Exibir, no todo ou em parte, filme, cena, peça, amostra ou congênere, bem como propaganda comercial de qualquer natureza, cujo limite esteja acima do fixado para os menores admitidos ao espetáculo”. A pena cominada para a infração era a multa de meio a dois salários de referência. Tal sanção poderia ser cumulada com a suspensão da exibição ou do espetáculo, no caso de inobservância da classificação fixada pelo Serviço Federal de Censura.
3. A constituição de 1988 consagrou a liberdade de expressão das atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5°, IX). Com tal orientação, modificaram-se substancialmente os critérios de controle das produções artísticas (ou supostamente tais) destinadas ao grande público, através do cinema, do teatro e congêneres, como o circo.
No regime das Cartas Políticas anteriores, a declaração da liberdade de expressão do pensamento era excepcionada com a cláusula expressa de censura quanto a espetáculos e diversões públicas (CF de 1946, art. 14
, § 5°; CF de 1967 e EC 1/69, art. 153, § 8°).
Competia à Polícia Federal, organizada pela União, a tarefa de prover à censura das diversões públicas (CF de 1967, com u EC 1/69, urt. 8Q, VIII,
“d”).
No regime constitucional vigente, a Polícia Federal destina-se às atividades específicas de prevenção e repressão de infrações penais cuja natureza e extensão ofendam bens de interesse prevalente da União, além de exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras e, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União (art. 144, § 1°).
Com a supressão da censura exercida através do Serviço Federal de Censura, como órgão da Polícia Federal, o controle sobre espetáculos dirigidos às crianças e adolescentes ou a eles proibidos se exerce por outros órgãos e mecanismos.
O tratamento diversificado entre a Constituição vigente e o ancién régime toma-se eloqüente pela direção adotada pelo art. 220 e § 2°, verbis:
“A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. “§ 2°. É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.
O ordenamento positivo em vigor prevê, no entanto, a classificação de diversões públicas e de programas de rádio e televisão para efeito indicativo, isto é, para proibir o acesso de crianças e adolescentes a determinadas atividades ou recomendar sua .impropriedade conforme as faixas etárias. Compete exclusivamente à União exercer tal classificação (art. 21, XVI).
4. É evidente, porém, que o sistema constitucional brasileiro não poderia pactuar com a licenciosidade em matéria de diversões e espetáculos públicos, mesmo em relação àqueles que agridem a moral e os bons costumes em nome da liberdade artística.
A propósito, tanto a arte como os bons costumes resultam de expressões espirituais do homem e se materializam através de objetos de contemplação ou reflexão, por um lado, e regras de conduta, por outro. Dependendo das circunstâncias de tempo e de lugar, certas manifestações exercidas em nome das artes cênicas ou plásticas, do cinema, do rádio e da televisão podem ofender o pudor público e tipificar os ilícitos de ato obsceno (CP, art. 233) e de escrito ou objeto obsceno (CP, art. 234).
Para superar o conflito entre a liberdade de expressão artística e literária e os bons costumes, tanto a doutrina como a jurisprudência procuram estabelecer uma linha imaginária que permita distinguir o permitido do proibido. Tratando de tais limites, Everaldo Cunha Lima refere-se a escritos, objetos, representações teatrais e exibições cinematográficas que podem caracterizar obscenidades e, portanto, ofender o pudor. E enfatiza:
“Sem dúvida que podem. Mas, quando são essencialmente obscenos, realizam valor negativo, aparentando, à primeira vista, serem obras de arte. Bem examinados, arte não o são, porque a arte é um valor positivo. Podem até ser considerados como abuso da arte, mas arte não o são, pois onde começa o abuso termina o uso, o bom uso da arte” (“A arte e o obsceno”, em Fascículos de Ciências Penais, 3/61, Porto Alegre, Sérgio Fabris Editor, 1990, n. 4).
5. Com a finalidade de coibir os abusos cometidos em nome da liberdade de expressão artística, a Constituição atribuiu à lei federal o controle das diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, bem como os locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada (art. 221, § 3°).
E, ainda visando a prevenir a ofensa aos sentimentos e bens relacionados à moral e aos bons costumes, a Carta Política de 1988 defere à lei ordinária a competência para estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como a propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos ao meio ambiente (art. 220, § 3°, lI).
O referido art. 221 indica os princípios aos quais se devem submeter a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão. São eles:
“I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
Consoante o disposto no art. 76 do Estatuto, as emissoras de rádio e televisão “somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”. Dispõe o parágrafo único que “nenhum espetáculo será apresentado ou anunciado sem aviso de sua classificação, antes de sua transmissão, apresentação ou exibição”.
6. A infração de que ora se trata deve ser interpretada à luz desses parâmetros constitucionais, que valem não somente para as produções e programações de rádio e televisão como, também, para as variadas formas de expressão do espírito na ciência, nas letras e nas artes, ou seja, as três fontes de conhecimento e compreensão do homem e da natureza.
Por outro lado, dispõe o art. 74 do presente Estatuto que o Poder Público, através do órgão competente, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre: a) sua natureza; b) faixas etárias a que não se recomendem; e c) locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.
O Poder Público referido no texto legal é somente a União, como já se viu (CF, art. 21, XVI), e o órgão competente é o Departamento de Classificação Indicativa do Ministério da Justiça, ao qual compete: I – manter o acompanhamento de programas de televisão e diversões públicas; II classificar, para efeito indicativo, as diversões públicas e os programas de televisão, de acordo com as resoluções do Conselho Superior de Defesa da Liberdade de Criação e Expressão; III – exercer outras atribuições que lhe forem cometidas pelo secretário, isto é, pelo titular da Secretaria Nacional dos Direitos da Cidadania e Justiça (Dec. 99.244, de 10.5.90, art. 99).
O mencionado Conselho Superior de Defesa da Liberdade de Criação e Expressão foi instituído pelo Dec. 96.900, de 30.9.88, e a sua competência está agora regulada P<110 art. 88 do Dec. 99.244, de 10.5.90.
Com a finalidade de se estabelecer a uniformização dos critérios c1assificatórios das diversões públicas e de programas de rádio e televisão e visando a informar sobre a natureza das diversões e espetáculos públicos, bem como as faixas etárias às quais não se recomendam e os locais em que sua apresentação se mostra inadequada, o Ministério da Justiça baixou a Portaria 773, de 19.10.90 (DOU 22.10.90).
Segundo este diploma, nenhum programa de rádio ou de televisão será apresentado sem aviso de sua classificação, antes e durante a transmissão (art. 6º, parágrafo único).
Constitui infração administrativa prevista pelo art. 254 do Estatuto transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação.
O direito instituído em favor das crianças e adolescentes em ter acesso às diversões e espetáculos públicos adequados à sua faixa etária (ECA, art. 74) é, como se verifica, autolimitado. O ingresso e a permanência de menores de 10 anos nos locais de apresentação ou exibição dependem da presença pessoal dos pais ou responsável, que assumem, portanto, como acompanhantes, a responsabilidade sob o ponto de vista moral e, conforme as circunstâncias, até mesmo legal (penal, civil etc)
8. A pena pecuniária é cumulada com a suspensão do espetáculo ou o fechamento do estabelecimento pelo prazo de até 15 dias, se houver a reincidência na falta.
A noção de reincidência para os efeitos administrativos não deve ser distinta do conceito para os efeitos estritos do Código Penal (art. 63). Daí por que é necessário que a infração anterior tenha sido definitivamente julgada para que a nova prática ilícita seja classificada como reincidente.
Somente a autoridade judiciária é a competente para impor as sanções de suspensão do espetáculo ou interdição do estabelecimento. Esta conclusão decorre do confronto do presente artigo com as disposições que tratam do procedimento para imposição de penalidades administrativas às infrações às normas de proteção à criança e ao adolescente (arts. 194 a 197).
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury