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ECA: ARTIGO 8 /LIVRO 1 – TEMA: GESTANTE
Comentário de Ilanud

Uma leitura desatenta do artigo 8o do Estatuto da Criança e do Adolescente nos leva a crer que a proteção lá contida se concentra unicamente na gestante. Porém uma leitura mais minuciosa revela que o dispositivo legal assegura uma dupla proteção da vida humana: ao garantir a proteção e o atendimento específico à gestante, acaba por consequência protegendo o feto.

Ao conferir esta proteção especial à gestante, a lei, automaticamente, cria uma outra proteção ao embrião que se desenvolve, mas que ainda não nasceu, e consequentemente protege todas as gerações futuras. Por esta concepção, mesmo antes do nascimento, a vida, ainda que intra-uterina, já existe e deve ser preservada.

Proteger a gestante, então, significa, de modo reflexo, concretizar o princípio da proteção integral ao feto (presente) e à (futura) criança. Especificamente, tal proteção especial é garantida nos períodos pré e perinatal, ou seja, durante a gestação e nos momentos anteriores e posteriores ao parto, respectivamente.

A proteção à gestante assume caráter de extrema relevância social na medida em que o seu bem-estar é essencial para que se resguarde também o mais importante e primordial direito fundamental: o direito à vida. É o direito à vida que condiciona os demais direitos da personalidade e, de um modo geral, é dele que dependerá a fruição de todos os demais direitos. Trata-se de um direito tão amplo, que alcança desde a expectativa de vida, o próprio direito de ser gerado e, após o nascimento, o direito de continuar vivo dignamente, segundo padrões mínimos que resguardem a condição humana. É em razão disto, também, que o Código Civil, em seu artigo 2o resguarda todos os direitos do nascituro, desde a sua concepção.

O ECA, por sua vez, trata de impor ao Poder Público a obrigação de disponibilizar serviços médicos e medidas de proteção à gestante (apoio alimentar, por exemplo), através do SUS (Sistema Único de Saúde), bem como garantir cuidados especiais ao próprio recém-nascido, assegurando que este permaneça em companhia de sua genitora durante os seis primeiros meses de vida, ainda que esta se encontre privada de liberdade.

Infelizmente a letra da lei não se concretiza na realidade: há ausência de ações e programas públicos em todos os níveis (municipal, estadual e federal) para garantir os direitos desta população. No Município de São Paulo, por exemplo, não existe nenhum programa de apoio alimentar à gestante e à nutriz, conforme informações fornecidas pela Prefeitura Municipal.

A disponibilização destes serviços se torna mais necessária ainda quando tratamos da gravidez na adolescência, período da vida em que, em geral, a futura mãe não tem a estrutura necessária para, com os próprios recursos, criar e educar esta criança. Além desta falta de estrutura, por sua imaturidade física, funcional e emocional, crescem os riscos de complicações como o aborto espontâneo, parto prematuro, maior incidência de cesárea, dificuldades na amamentação e depressão.

O tema é de grande relevo na definição de políticas públicas. Podemos observar que embora a década de 90 apresente um crescimento no número de adolescentes grávidas, etal tendência tem se invertido nos últimos anos. Pesquisa recente realizada pelo IBGE (Pnad), mostra que em 2003 havia 81 mulheres grávidas para cada grupo de 1.000 adolescentes entre 15 e 19 anos, enquanto que em 1999 a taxa era de 90,5 por 1.000. Pesquisas realizadas pelo Ministério da Saúde (Sinasc) e cartórios civis neste mesmo período confirmam esta tendência decrescente: queda de 83,5 por 1.000 para 72,5 e queda de 85,9 por 1.000 para 66,1 respectivamente1 . Como já afirmado, os casos de gravidez durante a adolescência requerem cuidados especiais, mas o artigo 8 é universal, ou seja, o atendimento através do SUS deve atingir a todas as gestantes indiscriminadamente. O Sistema Único de Saúde “SUS” foi criado pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei 8.080/90, a qual o define no seu artigo 4º como o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público. A iniciativa privada, por meio de serviços contratados ou conveniados, pode também participar do SUS em caráter complementar.

As diretrizes de funcionamento do SUS foram estabelecidas pelo artigo 198 da CF/88, e são elas: I) a descentralização, com direção única em cada esfera do governo; II) atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e III) participação da comunidade. Em atenção ao inciso I deste artigo constitucional e em consonância com o artigo 88 do ECA , a Lei 8.080/90 determinou em seu artigo 7º, inciso IX, que a descentralização político administrativa do SUS seja feita com ênfase na descentralização dos serviços para os municípios e regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde.

Assim sendo, o SUS deve funcionar oferecendo um atendimento universal a toda a população, sem restrições de cláusulas ou cobertura, equânime em todo o território nacional, e integral, no sentido do conceito integral de saúde que inclui o indivíduo, a coletividade e o meio ambiente. Os serviços do SUS são prestados pela União, Estados e Municípios por meio de uma unicidade de comando em cada esfera de governo.

A universalidade da política de saúde não pode, entretanto, furtar-se às especificidades que circundam o exercício de direitos da população infanto-juvenil e neste caso com especial importância das gerações futuras, protegidas por via reflexa na garantia de proteção e cuidado que devem ser dispensados às gestantes.

1 Os números variam entre as 3 pesquisas em decorrência da forma de coleta de dados. Folha de São Paulo, 19 de junho de 2005, Caderno Cotidiano, página C12.
2 Art. 88 (ECA). São diretrizes da política de atendimento:
I  A Municipalização do atendimento; (…)

ARTIGO 8/LIVRO 1 – TEMA: GESTANTE

Comentário de Evelyn Eisenstein
São Paulo

O processo crítico e dinâmico do crescimento e desenvolvimento de qualquer criança, até a fase final da maturação de sua personalidade, durante a adolescência, começa bem antes de seu nascimento, isto é, na interação com o meio onde vive, desde a vida intra-uterina.

O período pré-natal, do momento da fecundação ao longo do tempo de gravidez (40 semanas), e o período perinatal imediato, do momento do trabalho de parto até as primeiras 48 horas, e, a seguir, até o primeiro mês de vida, são considerados, além de críticos, períodos vulneráveis. Idealmente, os cuidados de saúde devem ser abrangentes e com um enfoque multidisciplinar, integrando a gestante, o seu concepto, a sua família, inclusive o pai responsável pela gestação, em todas as etapas da gravidez, do parto, e até o primeiro ano de vida do recém-nato.

As diferenças no estado de desenvolvimento e integração de indivíduos resultam de uma variedade de causas, a mais óbvia sendo a diferença no ponto de origem. A delicadeza do processo de controle genético e a complexidade dos mecanismos e efeitos ambientais, que são responsáveis por sua expressão, são uma das maravilhas da natureza humana.

Vários estudos já demonstraram que as influências do elo materno-fetal e materno-infantil, como determinantes da trajetória da vida de qualquer pessoa, serão melhor expressas num meio ambiente favorável. Os efeitos dominantes de condições adversas podem alterar, sucessivamente, várias gerações, e a variabilidade entre populações.

O estado geral de nutrição, higiene e saúde da mãe, além dos cuidados e suporte social recebidos durante a gestação e a lactação (período de amamentação), são os elementos básicos que constituem o que denominamos de “padrão de vida”, ou, simplesmente, o “bem-estar” de indivíduos, famílias e sociedades. Por esta mesma razão, o peso ao nascer, os cuidados pré e perinatais e o crescimento de crianças podem servir como indicadores da extensão das desigualdades sociais existentes numa população. E o melhoramento das condições de vida, entre as gerações, só será possível quando forem assegurados os direitos da gestante e da nutriz, perante o sistema de saúde e a sociedade, em todos os seus segmentos.

O acompanhamento médico durante a gravidez e, a seguir, até o primeiro ano de vida do recém-nato, em visitas periódicas, é uma necessidade de nossa população, que visa, principalmente, a diminuir os fatores de risco associados às altas taxas de complicações da gravidez, parto e puerpério, e de mortalidade neonatal e infantil tardia. Prematuridade, baixo peso para a idade gestacional, deficiências nutricionais, anomalias congênitas, toxemia, septicemia, depressão puerperal, distúrbios afetivos do elo mãe-filho, falta de amamentação são as causas mais comuns da mortalidade e morbidade perinatal e que são facilmente preveníveis, através da atenção e cuidados primários e secundários de saúde.

Um aspecto que merece destaque especial é a gravidez na adolescência. A população adolescente brasileira compreende 34 milhões de habitantes entre 10 e 19 anos de idade, ou seja, 23% da população total. A taxa de fecundidade, isto é, o número de mulheres que já tiveram um filho, entre 15 e 19 anos de idade é de 10 a 15%, dependendo da área urbana ou rural. Portanto, cerca de 1 a 1,5 milhão de mulheres menores de 19 anos de idade tornam-se mães, anualmente, no Brasil. As complicações da gravidez, parto e puerpério são a sexta causa de óbito para as adolescentes entre 15 e 19 anos. Em 1986 a taxa total de mortalidade infantil era de 86 óbitos por 1.000 nascidos vivos, e entre as mães adolescentes era de 103 por 1.000.

As adolescentes engravidam por falta de planejamento, e, muitas vezes, à procura de uma relação afetiva, de um objeto de amor, ou somente devido à experimentação sexual, sem maiores conhecimentos. Por causa da falta de informações, do difícil acesso a serviços especializados, quando existentes, e de preconceitos e rejeições sociais, a gravidez na adolescência deve ser considerada como de alto-risco pelo sistema de saúde e prioritária, como uma demanda social. É necessário enfatizar que a adolescente não pode assumir, sozinha, o risco social e o ônus econômico de uma gra¬videz, o que irá perpetuar o ciclo de dependência e desajuste psicossocial.

O direito à suplementação alimentar da gestante e da nutriz, além dos cuidados pré e perinatais, alojamento conjunto e proteção social durante o período de amamentação asseguram o vínculo de dignidade, saúde e vida, valorizando o potencial humano, como um investimento social, do presente e do futuro da Nação brasileira.

Referências bibliográficas

Eisenstein, E,(coord.). Gravidez na Adolescência e Anticoncepção. Grupo de Trabalho 16, 25º Congresso Brasileiro de Pediatria. São Paulo, 1987.
Falkner, F., e Tanner, J. M. (eds.). Human Growth. A Comprehensive Treatise. 2ª ed. Nova York, Plenum Press, 1986.
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE. Perfil Estatístico de Crianças e Mães no Brasil. Mortalidade Infantil e Saúde na Década de 80. Rio, IBGE/UNICEF, 1989.
Ministério da Saúde. Programa Saúde do Adolescente ? PROSAD. Brasília, MS/DINSAMI, 1989.
The Alan Guttmacher Institute. Adolescentes de Hoje, País do Amanhã: Brasil. Nova York, AGI, 1989.

Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, organizado por M. Cury, A.F. Amaral e Silva e E. G. Mendez.

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ECA comentado: ARTIGO 8 / LIVRO 1 – TEMA: Gestante
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