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“O Estatuto da Criança e do Adolescente chegou à escola, mas de forma distorcida”. A sentença é do pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa, um dos redatores da lei, de 13 de julho de 1990. Para ele, um dos motivos para a distorção é o fato de a lei não ser considerada do ponto de vista de crianças e adolescentes, especialmente quando envolve a escola, antes considerada apenas parte da solução para os problemas do Brasil.

Segundo Costa, que já foi oficial de projetos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e ajudou a escrever a Convenção Internacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, no geral, a instituição escolar ainda mantém no regimento escolar algumas práticas de antes da redemocratização do País. O documento, que deveria estar presente em todas as escolas e ser de acesso universal, regula as relações entre a instituição e o público atendido.

Na entrevista especial ao portal Pró-menino/RISolidaria, Costa abre a discussão sobre o ECA dentro da sala de aula. De acordo com ele, pais, alunos e professores poderiam ser capacitados para atuar numa gestão democrática, prevista tanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) quanto indiretamente contemplada no ECA.

Você, internauta, também pode participar dando sua opinião no .

Pró-Menino – Qual é a avaliação que o senhor faz da relação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) com a escola? Para os professores, a comunidade educativa em si, o Estatuto é uma lei que cerceia a escola na hora de ela fazer a punição ao aluno? Por que o ECA ainda não chegou na sala de aula?

Antonio Carlos Gomes da Costa – O ECA chegou à escola, mas de uma forma distorcida. Quais são as duas distorções que nós vemos em relação ao Estatuto na escola? Primeiro, são aquelas relativas aos direitos da criança, do adolescente e da família perante à instituição escolar. Qual a diferença entre o ECA e a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) em relação à escola? A diferença fundamental é a LDB trata de como deve ser a oferta da educação, enquanto o ECA trata da demanda da educação, dos direitos daqueles que a demandam. perante o sistema de ensino. Veja os artigos 12, 13 e 14 da LDB, eles tratam da oferta, dos deveres do estabelecimento de ensino, que por conseqüência são os deveres da direção, dos professores e da gestão democrática da escola. Quer dizer, que é o espaço aonde direitos e deveres se encontram, é o espaço da gestão democrática da escola. Veja aqui (mostrando o ECA) o dever dos pais: “Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino; a não matrícula das crianças e adolescentes por parte dos pais no ensino público obrigatório configura delito de abandono intelectual” .

Na parte cabível à Escola e Conselho Tutelar: “os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de maus-tratos envolvendo seus alunos; reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares” . A escola tinha que comunicar rotineiramente ao Conselho Tutelar os alunos que têm faltas reiteradas e injustificadas e a evasão escolar quando a escola não tiver mais controle sobre a situação. Mesmo hoje tendo acabado a repetência, existem os ciclos e, em cada um, deveria haver comunicação dos resultados da avaliação. O Conselho Tutelar tem sido acionado de forma incorreta pelas escolas. Qual é a maneira como o Conselho tem sido acionado? Adolescentes que têm problemas de conduta, que ultrapassam os recursos regimentais e os recursos pedagógicos da escola, são encaminhados ao Conselho Tutelar como adolescentes que estão precisando de uma intervenção ou do Conselho Tutelar ou da Justiça da Infância e da Juventude. A escola começou a ver o

Conselho Tutelar como aquilo que ultrapassa o pedagógico, então vai pro Conselho Tutelar, que envolve o jurídico e o social. No caso de um adolescente que está em situação de conflito com a lei, deve-se acionar a autoridade policial, e não o Conselho Tutelar. Se um adolescente tirou a arma pro professor, bateu no professor ou está depredando a escola, tem que ser chamada é a polícia e não o Conselho Tutelar, que não é um disciplinador de adolescente insuportável pela escola.

Ele é um órgão pra receber as crianças e adolescentes que estão violados ou ameaçados de violação em seus direitos. Outra coisa. Uma criança chega com sinais de mau-trato na escola. Na escola, se a professora ver uma menina com sangue na calcinha, um menino com hematoma que denota espancamento, queimaduras, mau-trato, tem que comunicar o Conselho Tutelar, pra ele verificar, estudar aquele caso e ver o que está acontecendo. Assim ele é um auxiliar da escola. Hoje, por exemplo, as escolas não gostam de expulsar regimentalmente os alunos. E o que elas fazem? Elas pegam o adolescente cumprindo liberdade assistida, o adolescente está com mau comportamento e, em vez de expulsar – porque isso vai dar problema com a Promotoria, com a Justiça da Infância e da Juventude e com o próprio Conselho Tutelar, dão a ele uma transferência. É a chamada expulsão branca, é expulsão não regimental, porque, senão, se o aluno for expulso, ele fica sem direito à educação. Existe hoje uma série de interfaces entre os artigos 12, 13 e 14, que tratam dos direitos, aliás, dos deveres do diretor e do professorado.

O artigo 14 fala sobre gestão democrática, que é o espaço de “consertação” entre escola, família e comunidade. Todos os três podem estar representados nos órgãos dos conselhos escolares ou equivalentes, que é APM (associação de pais e mestres).

Pró-Menino – Na APM existe representação de professores?
Antonio Carlos Gomes da Costa –
Deveria ter, porque ela é um conselho escolar. E por que é que se fala sobre a gestão democrática? Participação das comunidades escolar e local. A comunidade local é composta por organizações, famílias e organizações da comunidade. Então tem que ter representação dos pais e de outras institucionalidades locais que mexem com criança e adolescente. Aí há um território: os artigos da LDB que já citei, o capítulo de educação do ECA formam uma coisa que nunca foi trabalhada de forma sistemática. Você pega, por exemplo,

o regimento da escola, que não contempla essas conquistas todas aqui que estão no ECA e na LDB. Então é um estado democrático de direito que o sangue dele não chegou ao dedão do pé do sistema que é a escola.

Pró-Menino – O senhor considera que os educadores pensem que o Estatuto cerceie o professor? Ele não tem mais direito de falar pro menino ficar quieto? O Estatuto inibiria sua atuação ali em sala de aula?
Antonio Carlos Gomes da Costa –
O Estatuto tornou a criança e o adolescente sujeitos de direitos exigíveis. Agora, o que acontece? A criança, por exemplo, tem o direito ao respeito, não pode ser tratada de forma desumana ou degradante. Se algum pai, criança ou adolescente na escola entender que um determinado tratamento que ele recebeu foi desumano ou degradante, ele poderá recorrer ao Estatuto. Como eu disse, o Estatuto é o órgão da demanda. E a escola, ela é uma instituição muito corporativa, muito fechada sobre si mesma. Um pai querer ter ciência do regimento escolar ou do projeto pedagógico, tudo isso é visto como ameaça às escolas. O que eu vejo como necessário mudar? Hoje os conselhos escolares, tanto os conselhos municipais, estaduais de educação, como os conselhos APM, deveriam contar com representantes da família e representantes da comunidade. E não serem conselhos apenas de notáveis da educação. E qual seria a revolução que poderíamos fazer? Seria pegarmos os artigos 12, 13 e 14 da LDB mais os artigos do capitulo de educação do ECA e os cotejarmos com os regulamentos da escola e com as normas de cada sistema de ensino. Além das ordenações infra-legais, que são portarias, pareceres dos conselhos estaduais e municipais de educação, que também devem serem seguidos. A escola, ao fazer o seu regimento, ela tem que observar a Constituição, as leis, o ECA e a LDB, e tem que observar também as normas de cada sistema de ensino. A revolução seria se trabalhar pelo direito a exigibilidade do direito a educação, capacitando pais, alunos e professores que queiram participar dos quoruns de gestão democrática. Porque os pais chegam lá, eles não têm conhecimento nem de seus direitos e nem de seus deveres. Estão sem formação e sem informação. Se você não qualifica a oferta de educação, você não amplia e não qualifica a oferta de educação. Você tem que trabalhar com dois pratos de uma balança, criando um equilíbrio entre oferta e demanda. Por exemplo, no Brasil, nós não aceitamos uma seleção perna de pau. Porque a pressão da imprensa é tão grande que mete até o presidente da República no meio. Eu lembro que na Copa de 2002, com o técnico

Felipe Scolari, o presidente Fernando Henrique pediu escalar o Romário. Aí o Felipão falou assim: “ele cuida dos negócios dele e eu cuido dos meus”. Por que é que nós não

Se realmente houvesse a expulsão regimental, a escola poderia ter problemas por estar infringindo o ECA ao limitar o acesso à educação

temos isso com o desempenho do sistema de ensino, que é aquele que é capaz de exterminar o futuro do País e de cada uma das crianças? Eu falo que o verdadeiro exterminador do futuro é o ensino de má qualidade. Hoje nós temos 97% das crianças e adolescentes dentro do sistema. Mas nós temos crianças chegando à quinta série como analfabetos funcionais. E porque o Brasil não deu certo? Você vê que

duas coisas acabam faltando: compromisso ético e vontade política. E a vontade política não é só do governo, é vontade política de todo mundo, empresariado, do pai, da mãe, do Conselho Tutelar, do juiz, do promotor. Vontade política e competência técnica, porque não adianta também ter compromisso ético e vontade política se não tiver competência técnica na ponta. O que é uma boa escola? Escola boa é quando o aluno aprende. Então como você vai lutar agora pelo direito a educação? Você tem que qualificar o direito à educação. Os pais confundem direito à educação com três coisas hoje, com contribuição do Estado brasileiro pra isso: direito a educação é vaga na escola; direito a educação é merenda escolar – não vejo ninguém reclamando mais de merenda escolar, é uma reclamação dos anos 80 –; e, agora, material didático como direito à educação.

Pró-Menino – E isso é em detrimento da qualidade do ensino?
Antonio Carlos Gomes da Costa –
Não é em detrimento da qualidade. Isso tudo concorre para a qualidade. Matricular os meninos é fundamental, ter merenda escolar é fundamental, ter material didático é fundamental, ter atividades envolvendo família e escola, escola e família é também fundamental. Todas essas coisas por si mesmas não suprem a qualidade do ensino. Mas as pessoas não sabem o que é uma escola de qualidade, que é aquela em que o educando aprende o que ele tem a aprender. A escola só é boa quando o aluno aprende. Então como aferir a qualidade de ensino? Você chegou ao final do ano, a criança avançou nos conteúdos, ela sabe ler, sabe escrever, sabe contar. A família conhece o programa da escola que ela vai desenvolver e vê se a escola desenvolveu esse programa, se o menino sabe aquilo que a escola se propôs a ensinar.

Pró-Menino – Quanto ao ECA, ele geralmente é mais associado a direitos que a deveres…
Antonio Carlos Gomes da Costa –
Porque ele é uma lei de direitos.

Pró-Menino – Mas e os deveres de meninos e meninas?
Antonio Carlos Gomes da Costa – É interessante isso. Há algo fantástico no Estatuto que é a regra de interpretação da lei. Realmente, é a única lei que conheço no Brasil que possui isso. Essa regra está presente no artigo 6º do ECA, que é uma lente que vale para a leitura de todos os artigos na interpretação dessa lei. “Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais e a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento” (artigo 6º do ECA)

. Isso significa que qualquer artigo do Estatuto tem que ser interpretado à lei desses critérios parâmetros. Os direitos e deveres individuais e coletivos se aplicam a quaisquer dos 267 artigos dessa lei. Todos esses artigos têm de ser interpretados à luz do sexto. Então, é por isso que o Estatuto não fala em deveres, porque ele já falou aqui quais são os critérios. Você tem que ver os fins sociais a que a lei se dirige. Os direitos não se aplicam da mesma maneira a crianças, adolescentes e adultos. Por exemplo, o direito de ir e vir, eu não posso aplicar isso a bebê, a crianças em geral. Agora, a adolescentes eu posso. O menino da 4ª série ainda é criança, mas ele vai e volta à escola. Mas ele não vai pra onde ele quiser, ele não pode freqüentar certos ambientes, casas noturnas nem nada. Eu gosto de falar o direito ao trabalho. A criança não pode e não deve trabalhar. O adolescente, dentro das condições da lei, de 14 a 16 somente na condição de aprendiz, e com carteira assinada só depois dos 16, deve estudar e pode trabalhar. E o adulto deve trabalhar e pode estudar.

Pró-Menino – E a criança deve estudar, seria um dever pra ela?
Antonio Carlos Gomes da Costa –
A criança não pode e não deve trabalhar. O direito dela é estudar, brincar e conviver com a sua família e com a comunidade. O adolescente deve estudar e pode trabalhar. Por que a idade de ingresso no trabalho com a carteira assinada passou de 14 para 16 anos? Pela Emenda Constitucional nº 20. Porque o Brasil assegurou o direito à Educação Básica, que vai até os 16 anos. Se o menino entrar na escola com 7 anos e não repetir nenhum ano, com 16 ele termina o Ensino Médio. Aí, então, ele pode ir trabalhar. Em todos os países a educação básica coincide com a idade de ingresso no trabalho, o último ano de educação básica e o primeiro ano de ingresso ao trabalho.

Pró-Menino – E por que é dever do adolescente estudar e não da criança?
Antonio Carlos Gomes da Costa –
A criança e o adolescente têm direito à educação, e tem – dentro do princípio da reciprocidade, que cada direito corresponde a um dever – o dever de estudar, tanto a criança como o adolescente, eles têm o dever de estudar. Tanto que, quando a criança ou o adolescente não comparece à escola, estão tendo faltas excessivas, injustificadas, ou desistiram da escola, o que a escola tem que fazer? Comunicar o Conselho Tutelar, para que possa tomar as providências junto ao adolescente e à sua família. A função do Conselho tutelar se dirige a crianças e adolescentes violados ou ameaçados de violação em seus direitos. A polícia pode ameaçar ou violar os direitos da criança? Pode. Ela pode proteger os direitos da criança e pode ameaçar. Ela pode fazer parte do problema ou da solução. A escola pode fazer parte do problema ou da solução. O hospital pode fazer parte do problema ou da solução. O pai e a mãe podem fazer parte do problema ou da solução. E a escola se via apenas como parte da solução, ela não era capaz de se enxergar como parte do problema, e todas as instituições são. A começar pela própria família, os pais e as mães às vezes são protetores, às vezes eles são violadores. A polícia às vezes é protetora, às vezes age como violadora. O hospital às vezes age como protetor, às vezes age como violador, quando ela deixa sem atendimento por exemplo. E também a escola. Só que ela nunca se entendeu assim, ela se via só como parte da solução, nunca se viu como parte do problema.

Pró-Menino – Assim dentro do princípio da rede de proteção integral, a escola não se veria ali. Por que ela não se vê como parte da rede?
Antonio Carlos Gomes da Costa –
É porque ela não foi trabalhada para isso. Quando o Estatuto foi lançado, as forças sociais que estavam por trás do Estatuto se dirigiram muito mais para a polícia, para a Justiça da Infância e da Juventude, para o Ministério Público, para os internatos que privavam de liberdade as crianças por pobreza e não por cometimento de delito. Então havia tantos desafios que a escola ficou com uma lateralidade. Nenhum ator social importante se empenhou em fazer o Estatuto chegar na escola de forma não distorcida. Se todo ponto de vista é a vista de um ponto, quais são os pontos de vista da escola sobre o Estatuto? A partir da própria escola, ela não olhou pro Estatuto do ponto de vista da criança e do adolescente, ela não olhou o Estatuto do ponto de vista da família. Ela olhou o Estatuto do ponto de vista de si mesma. E o ponto de vista do Estatuto não é corporativo: ele atua no campo da demanda e não no campo da oferta. Então, ele diz para a criança ou o adolescente da família o que pode ser demandado da escola, enquanto os artigos 12, 13 e 14 da LDB dizem o que deve ser ofertado pela escola. E hoje existe um desencontro entre essas duas coisas. E na verdade nenhum dos dois, nem a LDB e nem o ECA, estão hoje contemplados, no curso dos acontecimentos, no dia-a-dia da escola.

Pró-Menino – E como seria essa aproximação com a escola, já que a lógica do ECA? Se existe uma resistência, como se aproximar?
Antonio Carlos Gomes da Costa – Nós ajudamos a criar essa resistência. Um exemplo de aproximação é o que cito no texto que escrevi para uma cartilha da Fundação Otacílio Coser. “A relação escola-família-comunidade é uma condição fundamental para a melhoria da qualidade da educação básica no Brasil. A construção de prédios escolares, o aumento do número de vagas, a formação em serviço e a melhoria das condições de remuneração e trabalho do magistério, bem como a assistência aos educandos, podem gerar resultados bem menores do que os inicialmente esperados, se a qualidade humana das relações entre os integrantes da comunidade educativa (educandos, educadores escolares e familiares e organizações da comunidade) não for adequada ao desenvolvimento de uma proposta educativa (projeto pedagógico) capaz de verdadeiramente atender às necessidades e expectativas de alunos, pais, professores, funcionários administrativos, técnicos em educação e voluntários, que atuam no estaco escolar. Cada estabelecimento de ensino tem um Regimento Escolar. O regimento deve funcionar como uma espécie de Constituição na Escola. Nele, devem estar expressos com clareza os direitos e deveres de todos os membros da comunidade educativa. Ele deve estar acima de todos os que participam de uma comunidade educativa. Ele só não pode estar acima da lei. Por isso, é importante que todos conheçam o que dizem as leis sobre o papel de cada um no dia-a-dia da vida escolar. Por entender que estes direitos e deveres são ainda pouco conhecidos é que o PEV (Programa de Educação Voluntária), que atua pioneiramente na Escola Rodrigues Alves, decidiu elaborar esta cartilha na esperança de que ela sirva de instrumento eficaz para por as regras do Estado Democrático de Direito para funcionar em favor da melhoria da qualidade da relação escola-família-comunidade em nossas redes de ensino público”. O PEV, ele tem escolas de pais pra capacitar os pais, ele orienta os voluntários que atuam em escola, ele tem atividades, cartilhas dirigidas aos alunos, ele procura criar uma comunidade educativa do jeito que a lei fala. Agora, é preciso ter uma perspectiva nacional pra trabalhar com isso.

Pró-Menino – E ntão, o esclarecimento seria uma coisa, uma primeira missão?
Antonio Carlos Gomes da Costa – O esclarecimento não só do Estatuto, mas também da LDB. Porque um age do lado da oferta. Quais são os deveres dos sistemas de ensino em relação ao direito à educação das crianças e adolescentes. Quais são os direitos das crianças e adolescentes e família frente ao sistema de ensino. Isso é uma coisa que o Brasil não conhece e precisa conhecer.

Pró-Menino – E a gestão democrática, como tentar fazê-la funcionar?
Antonio Carlos Gomes da Costa – Aqueles pais que se propõem a participar de conselhos escolares ou equivalentes têm que ser preparados para tanto. Os adolescentes, que têm mais condições de compreender e exigir os seus direitos do que as crianças, precisam também ser preparados, especialmente aqueles que participam de movimentos estudantis, grêmios, essas coisas. Você tem que preparar os professores,

a direção da escola e os dirigentes de ensino Agora qual o instrumento que atinge a todos ao mesmo tempo? É o regimento escolar. Se o regimento escolar incorporar tudo isso visão de gestão democrática

, e todos tivessem acesso, ele seria um instrumento que incorporaria aqueles dispositivos legais que eu já mencionei. Assim, você criaria uma outra atmosfera pra discutir a educação, que é discutir o direito à educação a partir das suas condições de exigibilidade.

“Hoje nós temos 97% das crianças e adolescentes dentro do sistema. Mas nós temos crianças chegando à quinta série como analfabetos funcionais”

Pró-Menino – Então, o regimento interno é alguma coisa que toca a todos?
ACGC – Sim. E le tem que ser divulgado para os pais e tem que ser explicado, não dá pra você apenas distribuí-lo. Tem que “didatizar”, tem que falar, explicar essa coisa toda.

Pró-Menino – E a escola, é atraente pra ela pensar, repensar o seu regimento, essa proposta?
ACGC – Todos os direitos têm que olhar em relação às exigências do bem comum e aos fins sociais a que eles se destinam. Então não é ser atraente ou não pra ela, é olhar o que a lei manda.

Pró-Menino – Quais são os principais atores da rede com os quais a escola lida? Além do Conselho Tutelar, que outros? Com a polícia a escola lida?
AGCG – Esse é um dos grandes problemas. Quando um adolescente comete delito, por exemplo, usa drogas na escola, é traficante de drogas dentro da escola, quem deve lidar com isso? É o Conselho Tutelar? Se o adolescente for dependente de droga, é o Conselho Tutelar. Se ele for traficante de droga, é a polícia, o Ministério Público e a Justiça da Infância e da Juventude.

Pró-Menino – Com a Vara da Infância a escola lida em algum momento? Uma coordenação, uma direção?
ACGC – A escola não tem que chamar juiz nem promotor lá. Mas eles vão à escola, quando há um conflito de interesse como, por exemplo, a falta de vagas. O que é a justiça? Justiça tem uma função judicante, tendo de resolver os conflitos com base na lei. Então, toda vez que estabelece conflito de interesse entre a escola, o educando e a família, o que acontece? Ou um ou outro vai recorrer ao Conselho Tutelar. Um exemplo de como o Conselho pode ser utilizado pela escola pra obrigar a família a cumprir seus deveres. O menino chega na instituição com hematomas, marcas de correia. O que a escola faz? Comunica ao Conselho Tutelar que, por sua vez, vai ver o que está acontecendo na família. E, se precisar, vai peticionar o Ministério Público de interferência da lei. O que aconteceu, a escola aí foi usada para a família cumprir seus deveres e respeitar os direitos da criança e do adolescente. Outro caso. O menino sofreu discriminação na escola, por ser negro, homossexual ou deficiente. O pai achou que ele está sendo discriminado e tenta resolver com a escola. Não conseguiu? O pai ou a mãe pode recorrer ao Conselho Tutelar, que, neste caso, pode peticionar ao Ministério Público.

Pró-Menino – Mas e se for um caso de bullying, por exemplo, de aluno discriminando o outro?
ACGC – A escola é responsável pela conduta dos educandos. Os pais podem peticionar, podem entrar no Conselho Tutelar reclamando que naquela escola existe discriminação, tanto por parte dos educandos como por parte dos educadores. Porque a direção da escola é responsável tanto pelos educandos como pelos educadores. Ela tem que ter um regimento que garanta que a criança e o adolescente não vão ser desrespeitados em seus direitos. Então você vê que tem uma missão civilizatória, é uma coisa imensa.

Pró-Menino – O que é a expulsão regimental? Porque existe uma cláusula que diz sob que critérios a escola poderia expulsar um adolescente, uma criança.
ACGC – Existe na escola todo um regimento interno, com um elenco de sanções, advertências, suspensão e, em último caso, a expulsão. Assim, se a escola esgotou todos os recursos, não tem mais jeito pra aquele menino, tem que expulsar.

Pró-Menino – E isso seria algo coisa muito pesado pra escola?
ACGC – Você tem que pegar isso e fundamentar no regimento. Essa escola é a escola que negou o direito à educação a alguém porque essa pessoa tinha uma conduta que era incompatível e tal. A escola se sente agredida em fazer isso. Aí o que ela faz? Prefere uma solução do tipo “ah, nós vamos te dar transferência”. É como se você tivesse pedido a transferência. Então, eles dão a transferência para o aluno. Agora a escola… Eu sou diretor de outra escola pública, aí chega um menino lá e você fala “você veio de onde? Você veio do Sergipe, de Minas?”. “Não, eu vim daquela escola, ali”. “Mas essa escola está mais perto da sua casa, o que você está fazendo pra cá?”. Aí eu ligo pra outra escola e eles falam “a gente deu transferência pra ele”. Aí eu não vou querer na minha, porque eu sei que ele é barra pesada.

Pró-Menino – Antigamente, nas escolas particulares, por exemplo, usavam o eufemismo de que fulano foi convidado a se retirar. Então fez uma reunião com os pais e convenceu os pais de que talvez o melhor que o aluno tinha a fazer era procurar uma outra escola.
ACGC – Muitas vezes isso acontece na escola pública. Quando o aluno, por exemplo, bateu no professor, depredou um patrimônio da escola, estava traficando droga, a escola fala para a família “nós temos duas alternativas: nossa alternativa é entregar pra polícia ou dar transferência pra ele”. Aí, os pais preferem a transferência, para não envolver a polícia.

Pró-Menino – No caso de uma violação cometida pelo professor, qual é o encaminhamento?
ACGC – Um professor chamou um menino de “negro sem vergonha”,. O garoto se sente ofendido e fala com os pais. O que o pai pode fazer? Primeiro, ele tem que ver se foi realmente isso que aconteceu. Ele deve procurar a direção da escola pra saber o que ocorreu. Um professor deu um tapa na cara do menino. O fato existiu realmente? O que diz o menino, o que dizem os colegas, o que diz o professor. Pronto, eu tenho condições de esclarecer. Aí a escola deve tomar providências contra o docente. Mas se a escola não fizer nada, e vier com desculpas como

“ah, ele ficou nervoso e fez isso,

“O hospital às vezes age como protetor, às vezes age como violador. E também a escola. Só que ela nunca se entendeu assim… nunca se viu como parte do problema”

deu um tapa na cara dele”, ou “chamou ele de negro sem vergonha porque ele estava irritado”, e o pai não se contentar com essa explicação, o que ele faz? Procure o Conselho Tutelar, porque é uma instância à qual a família pode recorrer para reclamar da escola, e à qual a escola pode recorrer para reclamar da família. O menino não está vindo à escola, o pai está pondo ele pra trabalhar e por isso ele não está vindo? Aí a escola

reclama da família no Conselho Tutelar. O menino está com um número excessivo de faltas, desistiu de estudar? Cada desistência tem de ser comunicada ao Conselho Tutelar da área. Se o Brasil praticasse isso… Na Coréia, por exemplo, eles não fizeram esse tipo de lei, mas a prática imperou. Uma pessoa me disse o seguinte: se na Coréia , se um policial vê um menino dez horas da manhã na rua, ele pega o menino e fala “onde é a sua escola?”. Ele não pergunta se ele estuda. Aí, o policial vai e entrega o menino na escola.

ECA na escola – Entrevista com o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa
ECA na escola – Entrevista com o pedagogo Antonio Carlos Gomes da Costa