Voluntários criaram ações para arrecadar e distribuir alimentos para quem enfrenta situação de vulnerabilidade pela Covid-19
A crise causada pela pandemia de Covid-19 agravou um cenário que já era preocupante no Brasil: a fome. Dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar em Contexto de Covid, revelaram que 55,2% dos brasileiros sofrem alguma ameaça ao direito à alimentação. Em abril de 2021, 116,8 milhões de pessoas passam por situações de insegurança alimentar, sendo que 43,3 milhões não têm acesso aos alimentos em quantidade suficiente, e 19 milhões, de fato, passam fome. Antes da pandemia, 57 milhões viviam nessas condições.
Diante dessa realidade, as campanhas de doações às famílias em situação de vulnerabilidade social foram essenciais para atender a necessidade básica de ter comida na mesa.
O estudo A Favela e a Fome, realizado pelo Data Favela, traz a dimensão da importância dessa corrente de solidariedade no contexto atual. Cerca de 90% dos moradores das favelas receberam alguma doação no ano passado, e oito em cada dez famílias afirmaram que, se não fossem essas colaborações, não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar contas básicas.
De todos os impactos negativos trazidos pela pandemia, a crise sanitária fez despontar um movimento de colaboração entre diferentes empreendedores que exerceram papel importante na luta contra a fome. Conheça algumas dessas histórias.
Nós por Nós Solidariedade
Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, o coletivo Nós por Nós Solidariedade surgiu para atender a necessidade do alimento pronto para o consumo por quem estava com fome. A organização teve início em abril de 2020, na Cohab Rubem Berta, na Zona Norte da capital gaúcha. No primeiro ano, mais de onze toneladas de alimentos foram divididas em quase 3.500 marmitas e entregues para pessoas em situação de rua.
O autônomo Luís Felipe Fernandes, 32 anos, que há dois anos mantém Do Bin Salgados, de quitutes de festa, foi um dos voluntários na empreitada. “Após a minha saída do sistema prisional, tive muita dificuldade de encontrar um emprego. Fui obrigado a empreender”, diz. “Com essa empreitada, veio à tona uma vontade que tinha desde pequeno: tive uma infância muito pobre e sempre quis me voluntariar em ações que ajudassem a alimentar quem está em vulnerabilidade, quem está passando fome. Este era o momento.”
Durante a pandemia, notou que precisava voltar o olhar para sua comunidade que carecia de apoio. Ele se juntou aos amigos e voluntários do projeto Adriel Rosa, Matheus Gomes e Arthur Nunes, também moradores da comunidade, para angariar doações e iniciar a distribuição dos alimentos. Aproveitou também a estrutura da Do Bin Salgados, como a cozinha, e parte da equipe composta por mulheres voluntárias para preparar as quentinhas que seriam doadas.
Ao andar pelas ruas dos bairros para fazer um levantamento dos moradores que perderam emprego, os voluntários entenderam que deveriam de ampliar o trabalho. Hoje, a iniciativa atua em bairros como Vila Conceição, Bom Jesus, Vila Safira, Parque dos Maias e na Vila Timbaúva.
“Resolvemos dar corpo a esse projeto de solidariedade. Por causa da pandemia, estamos realizando ações de arrecadação e distribuição de alimentos, de produtos de higiene e de roupas. Estamos ajudando com o que é mais urgente neste momento”, descreve Luís Felipe.
O Nós por Nós atende cerca de 400 famílias. O número é maior ao levar em consideração as pessoas em situação de rua, que não são cadastradas, mas recebem ajuda.
Cerca de 30 voluntários participam da ação, mas o projeto não restringe a quantidade de colaboradores, já que outros coletivos também ajudam nas empreitadas. Depois das campanhas de combate à fome, os jovens querem investir em educação e cultura para melhorar a qualidade de vida dos moradores da região.
Para o futuro, o objetivo é transformar a empreitada em um centro cultural no bairro Rubem Berta, e ajudar a acabar com o desemprego e outras precariedades por meio do ensino. “Vamos continuar com o nosso trabalho de amparo imediato a quem precisa. Estamos trabalhando para a implantação do nosso espaço físico e, assim, tornar o projeto permanente”, diz Luís Felipe.
A Onda Solidária
Logo no início da pandemia, a filha da enfermeira Tatiana Sales, Tayane, 31 anos, percebeu o aumento do número de pessoas em situação de vulnerabilidade, em Fortaleza, Ceará. Viu a mãe na linha de frente do combate ao vírus e decidiu adaptar sua rotina para ajudar à sua maneira. Advogada e surfista, Tayane organizou com alguns amigos o projeto social Onda Solidária, de distribuição de cestas básicas e kits de higiene para famílias de comunidades atingidas pela pandemia na capital cearense.
“De abril para maio, quando teve o primeiro lockdown, vi que as pessoas perderam seus empregos e muita gente na rua pedindo ajuda. Tive o privilégio de poder trabalhar em casa, e mantive a minha renda. Ajudar quem precisava era o mínimo que podia fazer para minha cidade”, afirma.
Para começar, Tayane disponibilizou uma conta bancária para receber doações, fez campanhas nas redes sociais, arrecadou alimento e foi entregar nos bairros. No primeiro ano do projeto, cerca de 400 famílias foram ajudadas.
Assim como milhares de brasileiros, a surfista sentiu na pele a dor do luto. Seu pai, Ricardo Santiago, morreu, vítima de Covid-19, em novembro do ano passado e suspendeu o projeto por um período.
O retorno se deu em março, quando os voluntários do Onda Solidária conseguiram mais 400 cestas e já ajudaram mais de 1.600 pessoas. “A morte do meu pai me destruiu por inteira e sigo machucada até hoje. Tentei transformar essa dor em luta. Foi muito difícil, achei que não iria aguentar, mas acredito que meu pai deve estar muito orgulhoso de mim. Isso serve de combustível para continuar o trabalho”, conta.
Tayane conta que nunca tinha pensado no empreendedorismo social, até colocar a mão na massa. “Aconteceu tudo muito rápido e as demandas não param. Apesar de achar que estamos caminhando para a normalidade, não estamos. Precisamos ser cada vez mais solidários para vencer a batalha que a pandemia trouxe com muita força: o combate contra a fome.”
Ao ver esse cenário e depois de conhecer outros empreendedores sociais, a advogada abraçou a empreitada de vez, principalmente para ajudar a sua cidade. Sua ideia é manter a ação mesmo depois da pandemia e transformar o Onda Solidária em uma ONG. “Quero levar a mensagem que o lugar de ninguém é na miséria e oferecer outros serviços que ajudem a juventude da periferia a ter mais oportunidades.”
Solidariedade para mudar SP
“A única coisa que temos que viralizar é a solidariedade”. É essa a máxima que motiva diariamente 150 jovens voluntários do projeto Solidariedade para mudar SP – contra o coronavírus. A iniciativa surgiu na Zona Leste da capital paulista, a partir de educadores de cursinhos populares, que começaram a mobilizar arrecadações para as famílias dos alunos.
Segundo Thaise Pacheo, uma das coordenadoras do projeto, o grupo percebeu, logo nas primeiras entregas, a grande quantidade de pessoas que iam precisar de apoio durante os meses de pandemia.
“A iniciativa começou em março de 2020. Arrecadamos doações de estudantes da Universidade de São Paulo para auxiliar famílias da Rede de Cursinhos Populares Elza Soares. Depois, sentimos que a campanha tinha um potencial muito maior”, diz. A ação foi expandida e o grupo passou a angariar alimentos e produtos de higiene para serem destinados a moradores das periferias nas zonas Oeste, Norte e Sul de São Paulo.
“Organizamos também doações de máscaras e álcool gel. Este ano, além dos kits solidários, realizamos ações de conscientização, como panfletagens e rodas de conversa sobre a importância da vacinação, de tomar as duas doses do imunizante, de se proteger evitando aglomerações e sempre usar máscara”, diz Thaise.
A rede tem, ainda, organizado mutirões com advogados populares para ajudar a população vulnerável a ter acesso a benefícios como o auxílio emergencial.
Até este momento, cerca de 1000 famílias recebem ajuda mensal com as doações do projeto. “Nossa campanha não vai parar. Os efeitos desta pandemia serão sentidos ainda por muito tempo. A insegurança alimentar é um problema recorrente no nosso país e não podemos parar. Quem tem fome, tem pressa, né?”, finaliza.