Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Por Tânia Carlos, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
31 de março de 2015. A data que rememora os 51 anos do Golpe Militar ficará marcada também por uma derrota sofrida pelos atores do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Na plenária da Câmara dos Deputados, a Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça (CCJ) aprovou, por 42 votos a favor e 17 contra, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171/93 que prevê a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos de idade.
Foi um duro golpe. De um lado, parlamentares conservadores e familiares de vítimas de violência defendiam ferrenhamente a aprovação da Emenda. De outro, uma minoria de deputados tentava adiar a votação, fortalecida pelo coro de estudantes e ativistas da educação.
“Trata-se de um retrocesso. É uma medida enganosa, que só vai gerar mais crimes e violência”, afirma o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em Políticas de Segurança Pública e ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). “Reduzir a maioridade penal é uma ilusão. Seria como se o Estado reconhecesse que não tem competência para educar seus adolescentes e resolveu encarcerá-los”, enfatiza.
Se a PEC 171 é inconstitucional, por que, mesmo assim, está em discussão?
“A norma máxima do país é a Constituição Federal”, diz a defensora Mara Ferreira. “Se interpretarmos os dispositivos constitucionais, chegaremos à conclusão de que a Constituinte estabeleceu os 18 anos como idade para a maioridade penal. Isso não pode ser modificado porque é cláusula pétrea.”
Segundo Ariel de Castro Alves, a questão extrapola os limites legislativos. “É preciso entender que o Congresso tem também um julgamento político, ideológico – e não apenas jurídico. Por isso, infelizmente, existe chance de a PEC 171/93 ser sancionada”, lamenta.
Uma comissão especial, composta por 26 titulares e com igual número de suplentes, terá três meses (40 sessões regimentais) para analisar o texto e as 46 emendas propostas nos últimos 22 anos, desde que a PEC foi apresentada pela primeira vez no Plenário. Caso seja aprovada, a proposta passará por votação no Senado – o trâmite deve durar cerca de um ano.
“Enquanto deputados e senadores continuarem se debruçando sobre o Sistema Penal e deixarem a educação de crianças e adolescentes de lado, a criminalidade no Brasil não vai ser reduzida”, ressalta a defensora pública Mara Renata Ferreira, coordenadora do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
O órgão emitiu nota oficial contra a medida. Não foi o único. Ministério Público, ONU, UNESCO e UNICEF também se manifestaram publicamente – o Conselho Nacional dos Defensores Públicos Gerais e a Associação Nacional dos Defensores Públicos questionaram a constitucionalidade da PEC 171.
Por que tantos órgãos oficiais e de influência global desaprovam a medida? O Promenino conversou com especialistas sobre os mitos da redução da maioridade penal. Entenda-os:
Mito 1 – Reduzir a maioridade penal aumenta a segurança
Ariel de Castro Alves: A redução da maioridade penal vai gerar mais insegurança pública. A reincidência no Sistema Prisional Brasileiro, conforme dados do Ministério da Justiça, ultrapassa os 60%. No sistema de internação de adolescentes, por mais que existam problemas – porque muitos estados ainda não cumprem a lei – estima-se a reincidência em torno de 30%. A Fundação Casa de São Paulo tem apresentado índices de 15%, mas não levam em conta os jovens que completam 18 e vão para as cadeias pela prática de novos crimes.
Nas prisões brasileiras, temos mais de 700 mil presos para 300 mil vagas. Em São Paulo, são 100 mil vagas para 300 mil presos. Onde os adolescentes serão mantidos já que não existem vagas no Sistema Penitenciário? A redução da maioridade penal é uma medida enganosa, que só vai gerar mais crimes e violência. Teremos criminosos juvenis sendo profissionalizados na criminalidade dentro de um Sistema Prisional falido.
Fonte do infográfico: Eu Quero Que Desenhe, compartilhado pela Secretaria Municial de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo
Mito 2 – Reduzir a maioridade penal afasta crianças e adolescentes do crime
Ariel de Castro Alves: Além de não afastar os adolescentes do crime, a redução da maioridade penal vai representar a condenação dos adolescentes a não serem mais recuperados ou ressocializados. Eles perderão qualquer perspectiva de reeducação ao serem enviados ao Sistema Prisional.
Já dizia o antigo jurista italiano do século 18, Cesare Beccaria: ‘o que inibe o criminoso não é o tamanho da pena, mas sim a certeza de punição’. No Brasil, os criminosos tem certeza da impunidade porque os crimes não são apurados. Os índices oficiais reconhecem que menos de 3% dos crimes são investigados no país. Antes de pensarmos em mudanças nas leis, teríamos que cumpri-las.
Mara Renata Ferreira: A maior parte dos atos infracionais cometidos por adolescentes são relacionados a roubo e tráfico, ou seja, são crimes contra o patrimônio e tem a ver com o ingresso na sociedade de consumo, com a vontade de ter as coisas que as outras pessoas têm. Essa defesa da redução da maioridade penal ocorre muito por causa da violência, que é o que a mídia divulga, mas o índice de crimes que causam comoção na sociedade é baixo.
O Estado se omite nas políticas públicas que envolvem saúde, moradia, educação e emprego. Por essas e outras diversas circunstâncias, o adolescente entra no mundo do crime. Enviar o adolescente ao sistema carcerário é a dupla omissão do Estado.
De acordo com estudo divulgado pelo Unicef, menos de 1% das infrações cometidas por adolescentes são homicídios, sendo que dos 21 milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% deles cometeram crime contra a vida.
Fonte: Estatuto da Criança e do Adolescente – Um guia para Jornalistas|Rede ANDI Brasil
Mito 3 – Adolescentes já têm responsabilidade para serem punidos criminalmente
Ariel de Castro Alves: Quando se definiu no Código Penal de 1940 e nas sucessivas Constituições Federais a idade penal em 18 anos, não foi pela compreensão de que os adolescentes não sabem o que é certo ou errado. Eles têm total discernimento. Foi por questão de política criminal que se entendeu que eles deveriam ser responsabilizados por meio de medidas socioeducativas, com caráter mais educacional e de inclusão social do que punitivo. Também para que eles fossem mantidos separados dos presos adultos e, em vez de serem cuidados por carcereiros, fossem tratados por educadores. Exatamente por estarem numa fase peculiar de desenvolvimento, na qual as formas de tratamento que recebem repercutem em seus comportamentos e ações.
A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), do Ministério da Justiça, divulgou em 2014 um estudo segundo o qual jovens entre 16 e 18 anos são responsáveis por 0,9% do total dos crimes praticados no Brasil. Se considerados apenas homicídios e tentativas de homicídio, o percentual cai para 0,5%.
Dessa forma, se ficarem num sistema prisional em condições desumanas e degradantes, sem estudos e atendimentos médicos e psicológicos, sairão muito piores do que entraram, além de sofrerem as influências de presos mais velhos, muito mais engajados na criminalidade. Quem só conhece a violência, provavelmente, vai agir com violência. Quem nunca teve sua vida valorizada dificilmente vai valorizar a vida do próximo. O trabalho socioeducativo visa exatamente tirar os jovens no ciclo de violência e incluí-los socialmente.
Mara Renata Ferreira: Precisamos observar que o sistema carcerário no Brasil é falido. O índice de reincidência criminal nas prisões é de 70%. Nas medidas socioeducativas, o cálculo cai mais da metade. Se você tira a chance de um adolescente de cumprir uma medida socioeducativa e o joga, de cara, no sistema carcerário, a chance de ele reincidir e entrar definitivamente no mundo do crime é muito maior. O sistema carcerário não funciona, não recupera, tem déficit de vagas.
O sistema socioeducativo faz o que o sistema carcerário não consegue fazer: recuperar o jovem pelo viés da educação, para que ele possa viver em sociedade e não volte a cometer novos delitos.
Mito 4 – Muitos países têm reduzido a maioridade penal
Ariel de Castro Alves: Caso reduza a maioridade penal, o Brasil estará contrariando os princípios da Convenção da ONU dos Direitos da Criança, de 1989, segundo os quais as pessoas com menos de 18 anos de idade, quando cometem crimes, devem ser tratadas de forma completamente diferente dos adultos.
A pesquisa Tendências do Crime, feita em 2012 pela Organização das Nações Unidas, ao analisar as legislações penais de 57 países, concluiu que apenas 17% deles adotam a idade penal inferior a 18 anos.
Muitas vezes se confunde a idade penal com a idade de responsabilização. No Brasil, a partir dos 12 anos, os adolescentes são responsabilizados pelos seus atos.
Há alguns anos, a Alemanha e a Espanha chegaram a reduzir a idade penal, mas, ao observarem o aumento da criminalidade juvenil em razão da reincidência dos adolescentes que foram para as cadeias, resolveram voltar atrás. Os Estados Unidos e a Inglaterra estão atualmente rediscutindo as penas aplicadas às crianças e aos adolescentes. No Uruguai, recentemente, por plebiscito, a população rejeitou a redução da idade penal.
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