Mary Del Priore*
Mary del Priore é historiadora e escritora. Tem mais de 30 livros publicados e foi ganhadora de 20 prêmios, nacionais e internacionais, colabora com jornais e revistas nacionais e internacionais. Atualmente leciona no curso de pós-graduação em História da Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO/NITERÓI)
As crianças brasileiras estão em toda parte. Nas ruas, à saída das escolas, nas praças, nas praias. Sabemos que seu destino é variado. Há aquelas que estudam, as que trabalham, as que fumam crack, as que brincam, as que roubam. Há aquelas que são amadas e outras, simplesmente usadas. Seus rostinhos mulatos, brancos, negros, mestiços enfim, desfilam na televisão, nos anúncios da mídia, nos rótulos dos mais variados gêneros de consumo. Não é a toa que o comércio e a indústria de produtos infantis vêm aumentando progressivamente sua participação na economia, assim como a educação e o combate a mortalidade infantil são permanentes temas da política. O bem estar e o aprimoramento das relações pais & filhos tornaram-se assunto constante de psicólogos, sociólogos, psicanalistas, enfim, de especialistas que querem trazer uma contribuição para a melhor inserção da criança na sociedade.
No mundo atual, essas mesmas crianças passaram de reis a ditadores. Muitas de suas atitudes parecem-nos incompreensíveis. Quase hostis. Uma angústia sincera transborda das interrogações que muitos de nós se faz sobre o que seja a infância ou a adolescência. É como se as tradicionais cadeias de socialização tivessem se partido. Socialização na qual os laços de obediência, de respeito e de dependência do mundo adulto, acabaram sendo trocadas por uma barulhenta autonomia. Influência da televisão? Falta de autoridade dos pais? Pobreza e exclusão social de uma imensa parcela de brasileiros? Mais. E se tudo isso secretasse, nas margens da sociedade, uma brutal delinqüência juvenil, entre famílias nas quais o excesso de amor ou de bens materiais substitui a educação?
Ora essa quase onipresença infantil nos interroga: o lugar da criança na sociedade brasileira terá sido sempre o mesmo? Como terá ela passado do anonimato para a condição de cidadão, com direitos e deveres aparentemente reconhecidos? Numa sociedade desigual e vincada por transformações culturais, teremos, ao longo dos tempos, recepcionado nossas crianças da mesma forma? Sempre choramos sua perda do mesmo jeito? Que marcas trazem as crianças de hoje, daquelas que as antecederam no passado? Mas há, também, questões mais contundentes tais como, por que somos insensíveis às crianças que mendigam nos sinais? Por que as altas taxas de mortalidade infantil, agora, começando a decrescer, pouco nos interessam?
Para começar, existe uma enorme distância entre o mundo infantil descrito pelas organizações internacionais, por ONGs ou autoridades, e aquele no qual a criança encontra-se quotidianamente imersa. O mundo do que a « criança deveria ser » ou « ter » é diferente daquele onde ela vive, ou no mais das vezes sobrevive. O primeiro é feito de expressões como « a criança precisa », « ela deve », « vamos nos engajar para que », etc. até o irônico « vamos torcer para ». No segundo, as crianças são enfaticamente orientadas para o trabalho e o ensino, sobrando-lhes pouco tempo para a imagem que normalmente se lhes esta associada: aquela do riso e da brincadeira.
No primeiro, habita a imagem ideal da criança feliz, carregando todos os artefatos possíveis capazes de identificá-la, numa sociedade de consumo: brinquedos eletrônicos e passagem para a Disneylândia. No segundo, o mundo real, vemos se acumularem informações sobre a barbárie por ela sofrida e materializadas nos números sobre o trabalho infantil, a exploração sexual, o abandono nos lixões ou o uso que o tráfico de drogas faz de menores carentes, entre outros.
Privilégio do Brasil? Não! Na Colômbia, os pequenos trabalham em minas de carvão; na Índia, são vendidos aos cinco ou seis anos para a indústria de tecelagem. Na Tailândia cerca de 200.000 são roubados anualmente às suas famílias e servem à clientela doentia dos pedófilos. Na Inglaterra, os subúrbios miseráveis de Liverpool, produzem os « baby killers », crianças que matam crianças. Na África, 40% das crianças, entre 7 e 14 anos trabalham. Esses mundos opostos se contrapõem em imagens radicais de saciedade versus exploração.
Como se não bastasse, as mudanças pelas quais passa o mundo real fazem elas também suas tenras vítimas: a crescente fragilização dos laços conjugais, a explosão urbana com todos os problemas decorrentes de viver em grandes cidades, a globalização cultural, a crise do ensino face aos avanços cibernéticos, tudo isso tem modificado, de forma radical, as relações entre pais e filhos, entre crianças e adultos.
Explicações? Algumas: em primeiro lugar, tanto a escolarização quanto a emergência da vida privada chegaram com grande atraso entre nós. Desde o inicio da colonização, as escolas jesuítas eram poucas e, sobretudo, para poucos. No século XIX, a saída para os filhos dos pobres não era a educação. Mas a sua transformação em cidadãos úteis na lavoura, enquanto os filhos de uma pequena elite eram ensinados por professores particulares. E ao final do século XX, o trabalho infantil continuava sendo visto pelas camadas subalternas, como “a melhor escola”: “O trabalho – explicou uma mãe pobre, – é uma distração para a criança. Se não estiverem trabalhando vão inventar moda, fazer o que não presta. A criança deve trabalhar cedo”.
Afogados pelo trabalho, quase 60% desses pequenos trabalhadores, no Nordeste, são analfabetos e entre eles a taxa de evasão escolar chega à 24%; No sul do pais o cenário não é muito diferente. Trabalhando em lavouras domésticas ou na monocultura, as crianças interrompem seus estudos na época da colheita, demonstrando que estar inscrito numa escola primaria, não significa poder freqüentá-la plenamente. Assim, o trabalho, como forma de complementação salarial para famílias pobres ou miseráveis, sempre foi priorizado em detrimento da formação escolar.
Quanto à evolução da intimidade, sabemos o quanto ela sempre foi precária. Os lares monoparentais, a pobreza que se traduzia em espaços onde se misturavam crianças e adultos, a forte migração interna capaz de alterar os equilíbrios familiares, a proliferação de cortiços, no século XIX e de favelas, no XX, são fatores que alteravam a noção que se pudesse ter no Brasil, até bem recentemente, de privacidade tal como ela foi concebida pela Europa urbana e burguesa.
Mas, tampouco podemos achar que a história dos pequenos seria só um catálogo de maus tratos e horrores. Ontem ou hoje encontramos passagens de terrível sofrimento. Mas não só. Os testamentos feitos por jovens mães no século XVII não escondem a preocupação com o destino de seus « filhinhos do coração ». Os viajantes estrangeiros não cessaram de descrever o demasiado amor com que, durante o século XIX, os adultos tratavam as crianças. As cartas desesperadas de mães, mesmo as escravas, tentando impedir que seus filhos partissem para a guerra do Paraguai, sublinham a dependência e os sentimentos que os unia. Nos dias de hoje, educadores e psicólogos perguntam-se, atônitos, de onde vem o excesso de mimos e a “falta de limites” da criança brasileira já definida, segundo os resmungos de um europeu de passagem pelo Brasil, em 1886, como “pior do que um mosquito hostil”.
E por que as crianças são tão pirracentas? Uma das respostas está no escravidão. Como fazer uma criança obedecer a um adulto, como queria certa professora que vai, na segunda metade do século XIX, às fazendas do vale do Paraíba, ensinar os filhos dos fazendeiros de café, quando esses distribuem ordens e gritos entre os seus escravos? E não são apenas as crianças brancas que os possuíam. As mulatas ou negras forras, uma vez seus pais integrados ao movimento de mobilidade social que ocorreu na primeira metade do século XVIII, tiveram eles também seus cativos. Muitas vezes, seus próprios parentes ou até meios irmãos! Na sociedade escravista, ao contrário do que supunha a professora, criança mandava e o adulto escravo, obedecia.
A dicotomia dessa sociedade, dividida entre senhores e escravos, gerou outras impressionantes distorções. Tomemos o exemplo do trabalho infantil. Dos escravos desembarcados no mercado do Valongo, no Rio de Janeiro do inicio do século XIX, 4% eram crianças. Destas, apenas 1/3 sobrevivia até os 10 anos. A partir dos 4 anos, muitas delas já trabalhava com os pais ou sozinhas, pois perder-se de seus genitores era coisa comum. Aos 12 anos, o valor de mercado das crianças já tinha dobrado. E por quê? Pois se considerava que seu treinamento já estava concluído e nas listas dos inventários já aparecem com sua designação estabelecida: Chico “roça”, João “pastor”, Ana “mucama”, transformados em precoces máquinas de trabalho.
Quando da Abolição, crianças e adolescentes moradores de antigas senzalas, continuaram a trabalhar nas fazendas de cana de Pernambuco. Tinham a mesma idade de seus avós, quando esses começaram: entre 7 e 14 anos e até hoje, ainda cortando cana, continuam despossuídas das condições básicas de alimentação, moradia, saúde e educação. Como no passado, o trabalho doméstico entre as meninas, também é constante, constituindo-se num “outro” turno, suplementar ao que se realiza no campo. A ausência de uma política do Estado voltada para a formação escolar da criança pobre e desvalida só acentuou sua miséria. Ora, ao longo de todo esse período, a República seguiu empurrando a criança para fora da escola, na direção do trabalho na lavoura, alegando que ela era “o melhor imigrante”.
No inicio do século, com a explosão do crescimento urbano em cidades como São Paulo, esses jovens dejetos encheram as ruas. Passaram a ser denominados “vagabundos”. Novidade? Mais uma vez, não. Os primeiros “vagabundos” conhecidos eram recrutados pelos portos de Portugal, para trabalhar como grumetes nas embarcações que cruzavam o Atlântico. No século XVIII, terminada a euforia da mineração, crianças vindas de lares mantidos por mulheres sós, perambulavam pelas ruas, vivendo de expedientes muitas vezes escusos, – os nossos atuais “bicos” – e de esmolas. As primeiras estatísticas criminais elaboradas em 1900 já revelam que esses filhos da rua, então chamados de “pivettes”, eram responsáveis por furtos, “gatunagem”, vadiagem e ferimentos, tendo na malícia e na esperteza as principais armas de sobrevivência. Hoje, quando interrogados pelo serviço social do Estado, dizem com suas palavras, o que já sabemos desde o inicio do século: a rua é um meio de vida!
A entrada maciça de imigrantes, capazes de alavancar a incipiente industrialização, aos finais do século XIX, trouxe consigo a imagem de crianças no trabalho fabril. Mais uma vez, empurrados pela miséria, desprovidos do apoio de um Estado que deveria estar empenhado em educá-los e não, simplesmente em fazê-los substituir por custo mais baixo o trabalho escravo, os pequenos imigrantes passavam 11 horas, tendo apenas 20 minutos de “descanso”, frente às maquinas de tecelagem. Atualmente, a divisão da sociedade entre os que possuem e os que nada têm, só agrava a situação de nossa infância.
Nossa tarefa é a de resgatar a historia da criança brasileira não apenas enfrentando um passado e um presente cheio de tragédias anônimas como a venda de crianças escravas, a sobrevida nas instituições, as violências sexuais, a exploração de sua mão de obra, mas tentando também perceber, para além do lado escuro, a trajetória da criança simplesmente criança, as formas de sua existência quotidiana, suas ligações sociais e afetivas, sua aprendizagem da vida que, no mais das vezes, não nos é contada diretamente por ela. O mais importante, porém, é saber que as crianças brasileiras têm uma história. E querer conhecer mais sobre comportamentos e formas de ser e pensar em relação a elas é também uma forma de amá-las todas e indistintamente melhor.
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