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Crédito: Wilson Dias/Agência Brasil

Por Carolina Pezzoni, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz

“Todo mundo é e ninguém vê” é uma das inúmeras reflexões de Estamira, sensivelmente registradas pelo diretor e fotógrafo Marcos Prado, no documentário de 2006, que traz como título o nome da protagonista. Quem assistiu, carrega na memória a imagem da paisagem inóspita que ambienta e molda essa história: as intermináveis montanhas de resíduos do aterro sanitário de Jardim Gramacho, no município de Duque de Caxias (RJ), conhecido por ter sido o maior da América Latina até o seu fechamento, em 2012.

Hoje, após o desfecho de uma vida de dedicação ao lixo produzido pelo homem, com a morte de Estamira em 2011 pelo “descaso do sistema público de saúde”, como declarou Prado, a ponderação inicial da personagem ganha novos contornos e remete a uma realidade não muito distante e tão invisível como a dela: a das crianças e adolescentes que trabalham nos lixões e aterros do país. Todos somos e não vemos, nos furtamos a interpretar.

Uma das piores formas de trabalho infantil, de notório risco e dano ao desenvolvimento de um ser em formação, a exploração do trabalho infantil nos lixões acontece em aproximadamente 3,5 mil municípios brasileiros, de acordo com dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), sendo que a maior ocorrência está na região Nordeste (49%). Mais de 30% dessas crianças nunca foram à escola ou deixaram de ir por demanda familiar, exaustão ou preconceito.

A insalubridade encontra neste tipo de trabalho a sua definição original: a constante movimentação de caminhões e máquinas pesadas, horários inadequados de trabalho, exposição a objetos cortantes e contaminados, gases tóxicos, presença de abutres e outros animais perigosos. A lista de moléstias resultantes é extensa: pneumonia, doenças de pele, leptospirose, febre tifoide, diarreia, dengue, entre outras.

Uma das primeiras medidas de combate a esta forma de trabalho – até pelo seu caráter emergencial – é impedir o acesso de crianças e adolescentes a esses locais. Segundo a procuradora do Trabalho Elisiane dos Santos, coordenadora da Coordinfância (Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente), a atuação de âmbito repressivo do Ministério Público do Trabalho permitiu avanços no sentido de retirar crianças e adolescentes dessa condição degradante e perigosa. Exigiu-se também a adequação dos municípios, transformando seus lixões em aterros sanitários. No entanto, essas medidas acabaram se mostrando insuficientes para resolver o problema como um todo.

Leia a 1ª matéria da série sobre as piores formas de trabalho infantil: Entre paredes, debaixo do tapete: a invisibilidade do trabalho infantil doméstico

“Embora se efetivassem medidas emergenciais, depois de algum tempo, as crianças, adolescentes e suas famílias acabavam retornando àquela condição desumana e degradante de trabalho e condição de vida.”

Política ambiental
A Política Nacional de Resíduos Sólidos (lei 12.305/10), que se consolidou em 2010, obrigando os municípios a adequarem seu sistema de manejo de resíduos sólidos, abriu espaço para outras frentes de atuação no combate ao trabalho infantil. Como muitas crianças que trabalham nos lixões são de famílias de catadores, uma questão fundamental para combater a prática, como ressaltou Elisiane, é a inclusão social e o empoderamento desses trabalhadores.

“Eles precisam ter a oportunidade de desenvolver esse trabalho de forma adequada. E uma das medidas é a sua organização em associações ou cooperativas”, reforça a procuradora. Por isso, o MPT faz um trabalho também neste sentido, de valorização dessa categoria profissional por meio de projetos de inclusão e de estímulo à sua contratação pelos municípios para que participem dessa nova política ambiental.

Outra necessidade são as políticas públicas direcionadas às crianças e adolescentes de famílias de catadores. “Estão em maior vulnerabilidade social, então os programas sociais devem ser assegurados a este público de forma prioritária”, alerta Elisiane. Este é um dos pedidos formulados em ações civis públicas, TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) e acordos de cooperação, para que sejam garantidas: matrícula na escola da rede, serviço de creche, inserção dos adolescentes em programas de aprendizagem profissional etc.

Junto a isso, é preciso que a sociedade tome consciência em relação ao que faz com o lixo; não simplesmente no âmbito residencial, mas principalmente nas empresas e grandes produtores de detritos. Volumes maiores devem ser direcionados para cooperativas, a fim de garantir geração de renda, cidadania, autoestima e condições melhores de vida para os catadores. “Na medida em que essas ações forem tomadas, um desdobramento positivo na retirada de crianças e adolescentes da situação degradante do trabalho infantil nos lixões volta a ser possível”, conclui Elisiane.

Especificidades

O grande desafio em relação às piores formas, como menciona Maria Cláudia Falcão, coordenadora do Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil da Organização Internacional do Trabalho (IPEC/OIT), é o seu caráter de urgência contra o fato de serem as mais difíceis de identificar. Além disso, “cada uma delas exige uma determinada forma de atuar. Nem tudo o que se aplica para uma, aplica-se para outra”.

De acordo com Elisiane dos Santos, as políticas ambientais sobre compostagem são a forma mais adequada de destinação do lixo orgânico, em substituição aos aterros sanitários. Ela também enfatiza a e reciclagem do lixo como forma de trabalho em condições adequadas para catadores. “Medidas estas que devem ser adotadas pelos Municípios, segundo a Política Nacional do Meio Ambiente, para a qual temos direcionado a atuação do MPT no sentido de exigir o cumprimento da referida legislação.”

Para a coordenadora da Coordinfância, é preciso a conscientização da sociedade sobre o assunto. “Lixões devem ser extintos. Os resíduos sólidos precisam ser destinados a compostagem e o material reciclável tratado em centros apropriados que permitam aos catadores trabalhar em condições dignas. A população também ajuda nessa política quando separa o lixo”.

“Estamos em um nível em que as políticas públicas mais gerais já alcançaram quem deveriam alcançar, mas não são mais suficientes para determinados públicos. Torna-se necessário trabalhar com as especificidades. É como pensar a aprendizagem para a área rural. Tem que criar alternativas para tirar as crianças desses lixões”, defende. Em sua avaliação, inovar para avançar na erradicação do trabalho infantil significa trabalhar com a ideia de cadeias, com focos específicos.

Um foco importante na questão dos lixões e aterros é a responsabilização das empresas administradoras. “Seja privada ou estatal, se aquilo é uma empresa, que exerce atividade lucrativa, precisa criar formas de funcionar adequadamente”, ressalta a coordenadora do IPEC. Neste ano, o 12 de junho (Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil) trata das cadeias produtivas – “assunto que há muito não se falava por conta do discurso de que acabamos com o trabalho infantil no setor formal”, afirma Maria Cláudia, mas que ainda é relevante. “Não dá para dizer que não tem como criar mecanismos. A justificativa é de que eles querem estar lá, que os pais não têm onde deixá-los. Então, que se criem esses lugares para estarem. É uma questão de dar a devida prioridade.”

Uma grande deficiência dessa forma de trabalho é a falta de dados e informações. Não há uma preocupação em dimensionar o problema, o que permitiria dar a devida urgência ao seu combate. “Se o número de crianças no lixão no país estivesse estampado na capa dos jornais isso teria um grande impacto e pressionaria para uma resolução nacional”, argumenta.

Como lembra a coordenadora, o Brasil é reconhecido internacionalmente por todos os seus dados, por toda a série histórica que vem fazendo em relação ao número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, mas ainda permanece o desafio de mensurar as piores formas. “Sem medir, fica difícil propor estratégias efetivas para eliminar a situação: onde elas estão? Como acontecem? Quais as faixas etárias? Isso é muito importante para determinar qual vai ser a melhor forma de atuação.”

O problema dessa espera é que são as crianças que seguem expostas aos perigos físicos e emocionais das piores formas e têm o seu futuro comprometido. Nos últimos cinco anos, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 12 mil crianças sofreram acidentes no ambiente de trabalho, e 110 morreram. É uma forma de lembrar que, para cada infância perdida, o lixão não é apenas pano de fundo, mas descuido e produto de todos nós, diria Estamira.

Confira o vídeo da campanha “Trabalho Infantil – Você não Vê, mas Existe”, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), sobre o trabalho infantil nos lixões:

Infâncias perdidas no lixão: o que falta para resolver?
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