Crédito: Bruna Ramos/EBC
Por Christine Fontelles*
Nas paredes das “cuevas” em Walichu, na costa do Lago Argentino em El Calafate, região da Patagônia, alguém por lá esteve há cerca de cinco mil anos e deixou sua mão ins(es)crita provavelmente anunciando: “eu estive aqui!”. Esta é uma “leitura” possível que podemos fazer tentando imaginar as motivações do dono da mão e da ação, um nômade por natureza e circunstâncias que vivia por lá.
Naquela mesma região, tempos depois, viveram os tehuelche. Na verdade, não era assim que se autodenominavam e não há registro sobre como se autodenominavam, mas foram assim denominados pelos mapuche, que os dominaram. Eles também foram chamados de Patagões (“pés grandes”) por exploradores espanhóis, que acharam grandes pegadas feitas pelas tribos nas praias da patagônia, em razão de um calçado que utilizavam. Todos nós conhecemos a história com trágico desfecho deste “encontro” entre povos na América Latina iniciado no final do século XV e que ainda hoje produz crueldades.
Escrevemos para anunciar quem somos, o que tememos, que sonhos temos, o que queremos neste mundo, nesta que é a única vida que conhecemos como espécie. Prova inconteste são as pinturas rupestres ins(es)critas em diversas regiões do mundo, como a mão do nômade em Walichu. Saber escrever e ler é poder, é garantia de liberdade para pensar e expressar-se no mundo, para contar sua própria história, diferente do que ocorreu com os tehuelche.
Graças ao domínio da cultura escrita é possível ler que haviam pessoas que foram escravizadas, bem diferente de ler que haviam escravos. Pode parecer o mesmo, mas não é e disto bem sabe aqueles que são proficientes no idioma. A primeira frase revela o que de fato ocorreu, um processo de submissão pela força. Já a outra, anuncia naturalização, como pretendiam e pretendem sociedades escravocratas e racistas de plantão e em ação, pichando paredes de universidades com “Fora Negros”, ao lado de suástica, devido ao programa de cotas, e via redes sociais, com tantos casos intensificados nesta Olimpíada que é impossível citar. A certeza que fica é que estamos longe, bem longe, da ideia de cordialidade há tanto tempo cultivada entre nós.
A dedicação para promover a educação integral depende integralmente dos esforços realizados para formar bons leitores e isso significa oferecer experiências leitoras que contribuam não para plantar certezas, mas para cultivar perguntas. Como escreve Cecilia Bajour, crítica literária de livros para crianças e jovens, com expressiva atuação na formação de professores e mediadores de leitura, “acreditar que os leitores podem lidar com textos que os deixem inquietos ou em estado de interrogação é uma maneira de apostar nas aprendizagens sobre a ambiguidade e a polissemia na arte e na vida”. Apostar apenas em textos leves em posição de almofada, tão comum em falas, textos e campanhas de promoção de leitura é comprometer o direito de crianças e jovens à educação integral, ao desenvolvimento de conhecimentos e habilidades que permitam que se tornem e atuem como cidadãos do mundo.
Quando se diz que nunca antes se leu tanto, devido ao advento da tecnologia digital, é preciso que a gente se pergunte o que se lê tanto, se o que se lê tanto está em consonância com o que precisa ser lido como alimento ético e estético para a construção de nossa humanidade. Sair do plano das boas intenções e atuar como seres humanos comprometidos com a qualidade de todas as vidas é tarefa de toda uma vida e requer prontidão e cuidado, inclusive com as leituras que valorizamos e oferecemos diariamente em casa, nas escolas, nas bibliotecas.
Aprender a não silenciar e não ser silenciado, como ocorreu com os tehuelche, aprender a dizer quem somos neste mundo, como vem fazendo nossa espécie desde o momento primevo em que deixou de lado o medo, a busca por comida, as urgências impostas pela sobrevivência para buscar pigmentos em plantas e fazer uso de sangue para deixar sua marca ins(es)crita nas paredes das cavernas: nossas primeiras bibliotecas. É preciso formar leitores que não se sujeitem e não sujeitem ninguém. É preciso formar leitores que, como nos contos maravilhosos, não estranhem que lobos e carneiros possam ser aliados, para que fique decretado o artigo XIII dos “Estatutos do Homem” de Thiago de Mello, que escreveu logo após o golpe militar de 1964, quando renunciou ao posto de adido cultural no Chile, transformando indignação em poema: “o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou”.
*Christine Castilho Fontelles é cientista social formada pela PUC/SP com MBA em marketing pela FIA/FEA/USP. Consultora de Educação no Instituto Ecofuturo, organização da qual foi co-idealizadora e onde criou e dirigiu o Programa Ler é Preciso por 15 anos. É conselheira do Movimento por um Brasil Literário e da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Fundadora da Centhral do Brasil Consultoria de projetos de educação para a leitura e escrita e sustentabilidade.