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Crédito: Tibo/Flickr

Por Carolina Pezzoni*, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
*Colaborou Ana Luísa Vieira

“É claro que a vida não é indolor. Nem em tempos de paz nem em tempos de guerra, e acompanhar o crescimento das crianças tem a ver com um aprendizado da dor. Porém, como ensinar-lhes a lidar com a dor? Como identificar quando não há nada mais ao redor: apenas dor? Como lhes dizer você já foi aos três, aos sete, aos dez, aos doze, aos catorze, aos dezoito?”

(Yolanda Reyes, Escrever para os jovens na Colômbia, conferência apresentada em maio de 2011 e publicada no livro “Ler e brincar, tecer e cantar – Literatura, escrita e educação”, Editora Pulo do Gato)

De um lado, uma legislação de direitos, de outro, uma cultura de violência contra a infância. Este é o paradoxo, nas palavras da professora e deputada federal Maria do Rosário Nunes, que vive o Brasil no aniversário de 25 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em entrevista exclusiva ao Promenino, a deputada, ex-presidente da Comissão de Educação da Câmara e ex-ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, avalia os significados da presença do debate da redução da maioridade penal nos arrabaldes deste 13 de julho, data simbólica, que conduz a uma urgente reflexão sobre a situação das crianças e dos adolescentes no país.

Conforme ela observa, o Estatuto da Criança e do Adolescente, outorgado em 1990, nasce no bojo da redemocratização do país, com a Constituição de 1988, e vai mais além, interpretando a lei positivamente para a infância. Até então, teria vigorado uma doutrina de poder absoluto dos adultos sobre as crianças e adolescentes que, até hoje, se traduz em uma cultura de violações dos seus direitos. “Para além da situação política que está em curso quando debatemos o tema dos direitos da criança, é justamente na cultura conservadora e adultocêntrica do país, de poder absoluto sobre a infância, que reside a nossa maior dificuldade de implantação plena do Estatuto”, defende a deputada.

Ainda mais grave é a promessa de segurança para uma sociedade que, nas suas palavras, “tem toda razão em estar cansada do número de mortes violentas que ocorrem a cada ano no nosso país”, em troca do encarceramento dos adolescentes. “Ao contrário do que se pensa, esses não são os maiores algozes, mas as principais vítimas”, salienta. A contradição advém de um mundo regido por uma espécie de populismo penal, segundo o qual se trocam direitos por segurança. “O resultado é uma sociedade mais embrutecida, mais desumanizada e menos capaz de enfrentar verdadeiramente os seus problemas.”

O grande desafio, na visão da deputada, para que se cumpram os princípios democráticos e humanitários frente à infância e a todas as pessoas, é criar uma prática de escuta às crianças e aos adolescentes. Em sua avaliação, no Brasil, elas permanecem desprovidas de poder. “Há uma incapacidade em geral de colocar-se no lugar de um adolescente, de uma criança. Este colocar-se no lugar do outro requer pensar nas crianças em geral a partir daquela que fomos, a partir daquelas com as quais convivemos, incluindo a nós mesmos.”

Criança cidadã

Como assinalou a escritora Yolanda Reyes, a respeito do contexto colombiano, em um país no qual a infância tem toques de tragédia, mas onde se trata isso como se fosse comum, é uma questão obrigatória recolher e tornar audíveis as vozes das crianças no espaço público, na pólis, inclusive como uma forma de contradizer um olhar de comiseração ou falsa indulgência reservado a elas.

No mesmo sentido, a professora e pesquisadora portuguesa Gabriela Trevisan, autora da tese de doutorado “Infância e cenários de participação pública: uma análise sociológica dos modos de co-decisão das crianças na escola e na cidade”, comentou, em entrevista ao diário português Público, que a infância experimenta um estatuto ambíguo. “Por um lado, há a valorização das crianças, a necessidade de protegê-las, de construir mundos seguros para elas viverem. Por outro, há um recuo quando se quer envolvê-las num conjunto de processos que apelam à ideia de que são competentes e têm voz própria. Temos mais tendência para a ideia de vulnerabilidade, de fragilidade, do que de competência. As crianças têm muito mais a dizer e pensam muito mais sobre as coisas do que nós, adultos, achamos.”

Um dos principais méritos do ECA, portanto, na opinião da deputada Maria do Rosário, é ter inaugurado um conceito sobre os direitos das crianças e dos adolescentes. Ao mesmo tempo em que garante igualdade a eles, estabelece uma distinção, que consiste na responsabilidade diferenciada que a família, o estado e a sociedade devem ter a seu respeito. Nesta medida, o Estatuto é, em sua essência, o próprio estatuto de cidadania da infância e da adolescência brasileira. Para realizá-lo plenamente, bastaria parar de negar direitos a elas todos os dias, o que – na visão de Rosário – não é apenas uma negação do futuro, mas do próprio presente, “de sermos uma nação democrática hoje”. Confira a seguir a entrevista completa.

Promenino: O Estatuto da Criança e do Adolescente tornou-se referência mundial. O Brasil foi o primeiro país a ter uma legislação específica para crianças e adolescentes. Nestes 25 anos de ECA, o que temos a comemorar?

Maria do Rosário: O Estatuto é uma referência mundial, porque ele surgiu no bojo da democratização do Brasil. Ele surgiu a partir do crescimento desse movimento democrático que resultou na Constituição de 1988. Ele também é parte de uma movimentação internacional importante, a mesma que resultou na Convenção dos Direitos das Crianças das Nações Unidas. Então, é uma legislação de caráter democrático e garantista, que inaugurou um conceito sobre direitos da criança e do adolescente, superando a doutrina da situação irregular. É um estatuto de cidadania da infância e da adolescência brasileira, porque, assim como a Constituição Federal fez em 1988, abrindo caminho para a igualdade e justiça entre homens e mulheres, dizendo que a lei tem um valor idêntico para todas as pessoas, o Estatuto, ao garantir a condição de sujeito de direitos da criança e do adolescente e ao mesmo tempo destacar sua condição de sujeitos que vivenciam uma condição peculiar de desenvolvimento, o Estatuto foi além da própria Constituição, interpretando-a positivamente para a infância. Ele garantiu a igualdade entre todas as crianças e adolescentes brasileiros como direito, e ao mesmo tempo estabeleceu a distinção, que é a responsabilidade diferenciada que a família, o estado e a sociedade devem ter com as crianças e adolescentes, na medida em que são crianças e adolescentes.

Promenino: A própria infância tem um reconhecimento muito recente…

Maria do Rosário: …sobretudo no Brasil. Até o Estatuto, essa doutrina de situação irregular ela era uma doutrina de poder absoluto dos adultos sobre as crianças. E, por isso, tantas violações no âmbito da família, por isso nós temos uma cultura de violação dos direitos da criança. Para além de uma situação política que está em curso quando debatemos o tema dos direitos da criança, é justamente na cultura conservadora e adultocêntrica do país, de poder absoluto sobre a infância, que reside a nossa maior dificuldade de implantação plena do Estatuto.

Promenino: Que tipo de desafios há de se enfrentar para que as crianças e os adolescentes se tornem prioridade?

Maria do Rosário: O grande desafio para que se cumpra este princípio humanitário diante das crianças e dos adolescentes previstos no Estatuto é justamente o enfrentamento dessa cultura. Para uma sociedade com valores democráticos e de reconhecimento dos direitos humanos de todas as pessoas, em todas as idades, em qualquer etnia, em qualquer situação social, seria fundamental que construíssemos uma prática de escutarmos as crianças e os adolescentes. No Brasil, nós não temos essa prática de escuta, elas estão desprovidas de poder. Além disso, há uma incapacidade em geral de colocar-se no lugar de um adolescente, de uma criança. Este colocar-se no lugar do outro requer pensar nas crianças em geral a partir daquela que fomos, a partir daquelas com as quais convivemos, incluindo a nós mesmos.

Hoje, vivemos uma situação de paradoxo no Brasil, no aniversário de 25 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente. Por um lado, nós temos uma legislação garantista, uma legislação de direitos, e, por outro, uma cultura de violência contra a infância.

Crédito: Arquivo Pastoral do Menor Nacional

Promenino: A senhora se refere ao debate sobre a redução da maioridade penal que está em pauta na Câmara? O que representa essa coincidência para o aniversário de 25 anos do ECA?

Maria do Rosário: A redução da maioridade penal é um grande retrocesso para o Brasil, um retrocesso democrático, de direitos humanos, e um retrocesso de um pacto estabelecido pela Constituição de 1988 de que deveríamos caminhar no sentido de mais direitos, jamais de diminuirmos direitos. Este é um princípio da nossa Constituição. A aprovação da redução da maioridade penal é sustentada a partir de premissas que não são só conservadoras no campo das ideias, mas são também retrógradas, porque prometem segurança para uma sociedade carente – que tem toda razão em estar cansada do número de mortes violentas que ocorrem a cada ano no nosso país, são aproximadamente 56 mil vítimas da violência todos os anos – em troca do encarceramento dos adolescentes, falseando com a verdade, porque não são eles os maiores algozes dessa sociedade, dessas pessoas, dessas vítimas, ao contrário, são as principais vítimas! Isso é parte da contradição que estamos vivendo. No mundo contemporâneo, em uma espécie de populismo penal, trocam-se direitos por segurança. O resultado disso é uma sociedade mais embrutecida, mais desumanizada e menos capaz de enfrentar verdadeiramente os seus problemas.

Promenino: Então, não é uma questão de revisar e alterar algum ponto do Estatuto?

Maria do Rosário: Eu considero inaceitável a mudança da Constituição Federal. Aspectos do Estatuto, sim, são passíveis de serem revisados. Eu mesma fui autora de mudanças quanto à questão da adoção, na lei 12.010, de 2009, que trata do direito à convivência familiar e comunitária. Alteramos ali alguns aspectos para garantir que as crianças tivessem o direito à família e evitar que crescessem dentro das instituições, estabelecendo prazos para decisão judicial. Então, é natural fazermos mudanças no Estatuto hoje, em qualquer legislação, desde que não venham a ferir princípios e a coerência geral da lei.

A ampliação do tempo de internação [referindo-se aos jovens em medida socioeducativa] foi estudada como uma medida possível, desde que proporcional ao delito cometido e desde que o adolescente fosse mantido no sistema socioeducativo, porque temos de levar em conta o perfil dos adolescentes que estão dentro do sistema socioeducativo: um histórico de drogadição que não é tratado, apesar do Sinase, e por aí vai.

Promenino: O trabalho infantil é um dos temas que cobrimos no Promenino, e um problema que ainda atinge a mais de 3 milhões de crianças no Brasil. O que se pode fazer para erradicá-lo?

Maria do Rosário: Tanto no caso do trabalho infantil em geral, quanto em suas piores formas, em que se inclui a exploração sexual, não podemos usar outra palavra que não seja erradicar. Neste caso, ainda que o Brasil tenha liderado mundialmente a redução de vítimas, nós devemos continuar perseguindo a erradicação, o que só se faz pela via da distribuição de renda, do apoio à família e da responsabilização dos que exploram as crianças e adolescentes. Lamento informar também que, na Câmara dos Deputados, existe uma tentativa de se alterar a norma sobre o trabalho infantil, propondo a redução da idade para início do trabalho, o que romperia com a Convenção da OIT, que define a idade de proteção ao não trabalho infantil. Existe também uma tentativa de revisão da matéria sobre o trabalho juvenil, ao mesmo tempo em que está sendo revisada a maioridade penal. O relatório pela revisão,propondo a redução da idade para início do trabalho, é do deputado Paulo Maluf.

Relembre a reportagem do Promenino sobre a  CPI do Trabalho Infantil

Promenino: Um prognóstico complicado este… Existe alguma perspectiva positiva neste cenário?

Maria do Rosário: De 1995 até os dias atuais, nós temos muito para comemorar. Nós resistimos aos ataques que o Estatuto sofreu até os dias de hoje e continuaremos resistindo. E implantamos políticas também. Oito milhões e 100 mil crianças deixaram a linha da pobreza, segundo dados de 2011. Aumentamos a distribuição de renda. Reduzimos a mortalidade infantil. Criamos um sistema como o do Disque 100. Não tínhamos os Conselhos Tutelares e hoje temos em praticamente todos os municípios brasileiros. Criamos redes de proteção. Praticamente universalizamos a matrícula no Ensino Fundamental. Mas, ao falarmos em índices de violência no Brasil, continuamos tendo muita violência contra nossas crianças e adolescentes. Continuamos negando direitos a elas, todos os dias. E não é uma negação do futuro, não. É uma negação do presente, de sermos uma nação democrática nos dias atuais, porque quem não defende os direitos humanos na sua integralidade não têm condições de se apresentar como verdadeiro democrata.

Atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados aproximadamente 500 projetos que tentam modificar o Estatuto da Criança e do Adolescente. O mais radical deles voltou recentemente à tona, fazendo com que o aniversário de 25 anos do ECA fosse lembrado antes da hora. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, referente à redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, ganhou força e extrapolou os critérios constitucionais. Na madrugada do dia 2 de julho, foi aprovada pelos parlamentares graças a uma manobra de seu presidente, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). A PEC agora segue para o Senado, com a análise da Comissão de Constituição e Justiça e de um grupo especial. Caso passe pelas duas etapas, chega ao Plenário – e, para ser aprovada, deve contar com o apoio de 49 senadores. Confira as reportagens do Promenino sobre o assunto.

Negar os direitos da criança e do adolescente é negar à nação o direito à democracia, afirma a deputada Maria do Rosário
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