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02.01.2023
Tempo de leitura: 7 minutos

Para António Nóvoa, o digital é um meio poderoso para reforçar a democracia na educação

Para dar início ao ano de 2023, o pensador António Nóvoa tece reflexões acerca do uso de tecnologias digitais na educação pública.

O português António Nóvoa.

Será somente por meio de processos pedagógicos sólidos e coerentes que as tecnologias digitais poderão ser usadas, na educação, como uma força de cooperação, participação e solidariedade. Essa é a opinião do português António Nóvoa, uma das principais vozes globais no debate sobre os rumos da educação pública. Para dar início ao ano de 2023, o pensador concedeu uma entrevista exclusiva à Fundação Telefônica Vivo.

Doutor em Ciências da Educação e em História, António Nóvoa é também professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, pela qual foi reitor entre 2006 e 2013. Foi embaixador de Portugal na UNESCO (2018-2021) e já produziu mais de 100 trabalhos científicos na área pedagógica.

“O digital pode ser um instrumento poderoso para reforçar o caminho da cooperação, do trabalho mútuo, conjunto, de uma escola da inclusão, da participação e da democracia. Mas tudo depende dos humanos”, ressalta o pensador. Leia a entrevista completa a seguir:

 

Fundação Telefônica Vivo: Através da metáfora do celular e do quadro negro, o senhor tece uma reflexão sobre o uso da tecnologia em sala de aula. Como enxerga os desafios e oportunidades da integração da tecnologia no processo pedagógico? Como os professores devem ser preparados para essa nova realidade? 

António Nóvoa: Utilizei essa metáfora muito antes da pandemia, num tempo em que os meios e as plataformas digitais não tinham ainda invadido a quase totalidade da vida educativa. Hoje, precisamos compreender a necessidade da tecnologia, mas afirmando sempre que os nossos problemas são pedagógicos, e não tecnológicos. Só por meio de processos pedagógicos sólidos e coerentes poderemos utilizar as tecnologias digitais como uma força de cooperação, participação e solidariedade, e não como um instrumento de individualização e conformismo social.

FTV: O senhor defende que o digital pode ser um instrumento importante para apoiar as mudanças necessárias na educação e no ensino. Acredita que caminhamos para uma era da educação digitalizada ou existe um fetichismo sobre a tecnologia digital na educação?

António Nóvoa: A escola serve para educar humanos por humanos para o bem da humanidade. A educação é sempre uma relação humana. As máquinas não educam. Não é possível nos educarmos sozinhos, em frente a uma máquina. Precisamos dos outros, mestres e colegas, para a nossa própria educação. A escola é uma das poucas instituições que nos restam para a construção de uma vida em comum, de uma sociedade de convívio, em paz com a Terra e em paz com os outros. Para o bem da humanidade. Não há saber sem sentimento. Não há conhecimento sem emoção. O digital pode ser um instrumento poderoso para reforçar o caminho da cooperação, do trabalho mútuo, conjunto, de uma escola da inclusão, da participação e da democracia. Mas tudo depende dos humanos.

 

FTV: Para além da sala de aula e da escola em si, qual a importância da ciência de dados no planejamento da educação pública? 

Nóvoa: Se pensarmos nas políticas públicas, hoje, o mais importante é criar as condições para que escolas e professores possam ensaiar e construir novas formas de organização e de trabalho pedagógico. Ninguém sabe como será o futuro. É difícil planejar para um futuro que não se conhece, nem conseguimos prever. No Brasil, e em todo o mundo, há milhares e milhares de experiências e de iniciativas educativas muito interessantes. Nos últimos três anos, a UNESCO compilou este verdadeiro movimento de transformação que está em curso no mundo. O melhor que podemos fazer é apoiar, valorizar e partilhar estas iniciativas. Para surpresa minha, foi exatamente isto que veio dizer o presidente da França, Emmanuel Macron, no reinício das aulas no país, em agosto de 2022, apelando a uma “revolução copernicana”, a uma “mudança de método” nas políticas educativas, promovendo o que “vem da base”. Tem razão.

 

FTV: No Brasil, o fechamento das escolas causado pela pandemia agravou ainda mais o quadro da desigualdade dentro da educação. O senhor declarou que no pós-pandemia “não há nada novo, mas tudo mudou”. O que quis dizer com isso? 

Nóvoa: Quis dizer que os problemas da educação são muito anteriores à pandemia, e que esta não trouxe nada de novo, nada que já não soubéssemos. E, no entanto, tudo mudou com a pandemia. Em um certo sentido, fechou-se o longo “século escolar”, iniciado com a expansão das leis da escolaridade obrigatória nos finais do século 19 e que terminou com a pandemia. A educação nunca mais voltará a ser a mesma. A escola também não. Agora, precisamos construir novos ambientes educativos, mais abertos e diversos, mais inclusivos e democráticos, que induzam uma pedagogia do trabalho, da cooperação, da pesquisa e da comunicação.

FTV: O senhor deixa claro também que um bom professor é insubstituível. Promover uma formação docente inicial e continuada é ao mesmo tempo crucial e um dos grandes desafios da educação no mundo. Por quê? 

António Nóvoa: A educação é um processo muito complexo que envolve toda a sociedade. Mas no centro estão sempre os professores. Se alguém tinha dúvidas, a pandemia revelou claramente a centralidade dos professores. Mesmo em circunstâncias difíceis, foram eles que conseguiram manter uma certa “continuidade educativa”. Hoje, em todo o mundo, reflete-se sobre a necessidade de uma mudança profunda na formação de professores. Os modelos atuais já não servem. Precisamos construir realidades institucionais que juntem as universidades, as escolas e as autoridades municipais e estaduais em torno de novos espaços de formação de professores, que agreguem também dinâmicas de pesquisa e associativas. Vale a pena olhar com atenção para o Complexo de Formação de Professores do Rio de Janeiro.

O Complexo de Formação de Professores (CFP) do Rio de Janeiro (RJ) é uma política institucional acerca da formação inicial e continuada de docentes da Educação Básica, que se caracteriza pela defesa de um “terceiro espaço”, situado entre a universidade e a escola pública, que funcione como um locus privilegiado para esses processos de formação, entre outros aspectos. Saiba mais.

FTV: No Brasil, os cursos de pedagogia atraem cada vez menos jovens. Que relação isso tem com a falta de valorização da carreira docente? O que é necessário para reverter essa situação?

Nóvoa: Primeiro, é preciso que as sociedades e as famílias compreendam a importância e a complexidade do trabalho dos professores. Talvez a pandemia tenha ajudado. Depois, é preciso que as políticas públicas sejam coerentes e que respeitem a autonomia e a liberdade de escolas e professores. O caminho apontado pelo presidente da França me parece interessante. A seguir, é preciso que as universidades coloquem a pedagogia e a formação de professores como uma das suas grandes prioridades. Até agora não o fizeram, e não sei se serão capazes de o fazer. Finalmente, é preciso que os professores em exercício assumam que lhes compete, também a eles, um papel central na formação dos seus futuros colegas. São quatro responsabilidades distintas, mas que devem convergir se queremos mesmo transformar a condição dos professores e da formação de professores.


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