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Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz
A planta do tacabo, Nicotiana tabacum, tem folhas de um verde vivaz e cresce até três metros, com flores que despencam amarelas, vermelhas e brancas de seus cachos. Ainda que bonita, o manuseio é perigoso, pois de seus feixes vasculares se desprende a nicotina. Em contato com a pele, especialmente se molhada, essa substância pode causar a Doença da Folha Verde, uma intoxicação aguda que provoca enjoos, vômito, cefaleia e, a longo prazo, câncer e doenças cardiovasculares.
O Sul do Brasil é responsável por 96% da produção de fumo do país e o Rio Grande do Sul, o estado que responde por 53% desse número. É uma produção peculiar: mesmo com a grande demanda, o fumo queimado provém de propriedades minifundiárias, de até 10 hectares e com mão de obra familiar. São gerações que passaram toda a vida colhendo fumo, sofrendo das intempéries e também da tóxica nicotina. As mãos e maçãs do rosto que se queimam ao sol por muito foram também as de crianças e a adolescentes que davam continuidade ao negócio dos pais.
O programa ARISE – Alcançando a Redução do Trabalho Infantil pelo Suporte à Educação se estabeleceu em 2011, na cidade Arroio do Tigre, a maior produtora sul-brasileira do tabaco tipo Burley. O programa é fruto dos esforços da Organização Internacional de Trabalho (OIT), da empresa tabaqueira JTI, com atuação tanto no território nacional quanto internacionalmente e a ONG Winrock Internacional, que atua no desenvolvimento e estabilidade de comunidades.
Com duração de três anos – a primeira fase aconteceu de 2011 até 2014 e o projeto foi estendido de 2015 até 2018 – o programa visava combater o dado preocupante de que 80% dos jovens da região, entre 13 e 17 anos, afirmavam trabalhar nas lavouras de tabaco de suas famílias. “A agricultura familiar considera o trabalho como um valor. Quando levam seus filhos para lavoura, os pais estão transmitindo cultura, acreditando que assim as crianças tomarão gosto pelo ofício e permanecerão na propriedade – o que não é verdade”, explica Marcia Soares, oficial nacional de projetos da OIT.
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Combater a raiz do trabalho infantil nas lavouras sul-rio-grandenses é também combater tradições familiares fortemente enraizadas. Não era possível estabelecer apenas uma política de erradicação, porque a agricultura familiar não é somente um dado cultural, é também econômico e diz muito sobre as políticas públicas da região. “Muitos dos pais entrevistados precisavam da mão de obra dos filhos, pois não tem recursos para contratar diaristas adultos. Não adianta fazer só um trabalho de conscientização, tem de remunerar bem o pai e a mãe, diversificar as culturas das lavouras e levar outras alternativas econômicas para a sociedade rural.”
As distâncias enfrentadas dentro das zonas de campo também devem ser consideradas. Márcia reforça: “Como um pai ou uma mãe não vão levar o filho para a lavoura, se não tem creche, ou se ela existe e é muito longe da propriedade? É necessário pensar em políticas que ofereçam possibilidades para que os pais possam também prevenir o trabalho de seus filhos no cultivo”.
Por uma pedagogia da alternância
Entendendo que tratar de trabalho infantil dentro do espaço rural tem complexidades diferentes do que a do ambiente urbano, o programa da ARISE atuou em frentes que lidaram com a ideia de prevenção. O contraturno escolar não só evita a criança estar na lavoura, como também utiliza metodologias de aprendizado que os incentivam a tomar gosto pelo cultivo da terra. “Trabalhamos com jovens na pedagogia da alternância. As escolas são familiares e os alunos podem desenvolvem amor pelo oficio rural. Eles aprendem sobre novas tecnologias a serem utilizadas, sustentabilidade do meio ambiente, e como o negócio das propriedades rurais está se transformando”.
O contraturno também oferece oficinas diferenciadas de aprendizado, como aulas de violão ou de dança, entendendo que expandir o horizonte educacional das crianças também dá a elas chance de prospectar um futuro, seja ele na lavoura ou não. E para que elas tenham essas escolhas, é fundamental que os pais também sejam empoderados. O programa ARISE trabalha com oficinas de profissionalização das mães, oferecendo cursos como de confeiteira ou padaria para incrementar a renda familiar.
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Gerir e trabalhar com políticas públicas também foi um terreno fundamental para o sucesso do programa. “Capacitamos os gestores para dar sustentabilidade ao projeto e aprender a captar recursos públicos, sensibilizamos a população, treinamos orientadores do campo e desmistificamos o que é o trabalho infantil”, conta Marcia. A partir da observação e do diálogo com o município, notou-se o conhecimento de que a legislação urbana trabalhista não pode ser aplicada dentro da cultura agricultora.
Depois do insumo desse laboratório, a OIT inicia a segunda fase do projeto da ARISE com um diferente papel. Agora, o desejo é atuar no trabalho de advocacy junto aos governos e as organizações de trabalho, a fim de rediscutir a aprendizagem dentro da agricultura familiar e a capacitação dos trabalhadores, criando assim portarias e marcos regulatórios adequados para o campo. “Nós imaginamos que, até o fim do ano, vamos sistematizar essa experiência e desenhar uma metodologia que possa ser aplicada em outras regiões do Brasil”, conclui Marcia.
Os resultados do programa ARISE tem sido expressivos, como constam os dados da primeira etapa divulgados no final de 2014. Em uma população de aproximadamente 12 mil habitantes, que envolve Arroio do Tigre e alguns municípios no entorno, o programa beneficiou a vida de 1.621 jovens com o contraturno de formação, em parceria com as sete escolas da região. 550 mães foram treinadas em atividades de renda e 147 produtores foram sensibilizados e treinados em gestão de propriedade. Também foram capacitados 65 conselheiros tutelares que podem identificar violências a crianças e adolescentes no trabalho infantil e atuar para preveni-la.
Em um documentário que sistematiza os resultados do programa ARISE, o menino Marcelo Rauber conta sorrindo que, quando crescer, “às vezes quer ser músico, às vezes quer criar gado ou cavalo”.
A liberdade de escolha para ele e para todos os jovens das famílias produtoras de tabaco sul-rio-grandenses é um dos resultados mais bonitos de um programa que só é possível por não simplesmente arrancar as raízes do problema, mas cultivar práticas que respeitam as individualidades
do campo e de quem vive nele.