Créditos: Alexandre de Maio/Agência Pública
Juliana Sada, do Promenino com Cidade Escola Aprendiz
Imagine a sua rotina diária dentro de casa. Levantar, ir ao banheiro, tomar café da manhã, ir ao quintal, sentar na sala, voltar ao quarto. Agora, imagine intercalar, diante de alguém pouco conhecido, cada uma dessas atividades com o seguinte ritual: tirar a roupa, colocar as mãos na nuca, agachar três vezes e mostrar, de frente e de costas, suas partes íntimas. Pode-se somar a isso outras ações, como levantar os braços, abrir a boca e forçar a tosse. Constrangedor, não?
A situação descrita acima é rotina para os quase dez mil adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em meio fechado, nas unidades da Fundação Casa no estado de São Paulo, antiga Febem. Relatos indicam que, em média sete vezes por dia, os adolescentes repetem o procedimento, que é aplicado a cada movimentação dentro da unidade – da cela para o pátio, do pátio para uma sala, da sala para o refeitório… Se um jovem ficar um ano em regime fechado, ele passará por cerca de 2.500 revistas.
O que são medidas socioeducativas?
Destinada a adolescentes que cometeram atos infracionais, as medidas socioeducativas têm caráter pedagógico. O intuito delas é reeducar o jovem e evitar que haja reincidência. Quando privados de liberdade, os adolescentes têm direito ao lazer, ao esporte, à educação e ao contato com familiares e amigos.
“Toda movimentação interna reclama uma revista posterior, inclusive de madrugada. Isso faz parte da política institucional da Fundação Casa. É algo que tem uma característica de suplício muito forte. Tivemos notícias de até quinze revistas por dia”, afirma o defensor público Marcelo Carneiro Novaes,
que tomou conhecimento da prática em meados de dezembro de 2013 e organizou uma audiência pública sobre a questão, na última quarta-feira (12), em Santo André, município do ABC paulista.
O encontro teve como foco as cinco unidades da Fundação Casa da região do ABC, que abrigam 325 adolescentes e onde a prática se mostra recorrente. “Isso ocorre no estado inteiro, mas há variações na quantidade de revistas. Por dia, em todo o sistema são 70 mil revistas”, calcula Novaes.A advogada Vivian Calderoni, da ONG Conectas, considera que “a prática é abusiva porque eles têm que passar por revista a todo momento, sempre que é preciso mudar de ambiente na unidade”. Já o defensor público classifica a prática como absurda, “é uma violência de natureza moral e sexual”. Em nota, a Fundação Casa afirma que a revista “tem caráter de prevenção de eventuais ocorrências internas”. A instituição não forneceu mais informações sobre o procedimento “por motivo de segurança”.
Ainda que a prática seja recorrente na Fundação Casa e baseada no argumento da segurança, ela é inexistente no sistema prisional — que abriga a população adulta. Nele a revista íntima ocorre somente quando o preso tem contato com o mundo externo, ou seja, quando retorna ao presídio após alguma eventual saída. “No processo de um ano, ele passa por isso cinco ou sete vezes”, explica o defensor público. Enquanto isso, o adolescente é submetido a essa quantidade de revistas íntimas em apenas um dia e, no período de um ano, chega a passar pelo procedimento cerca de 2.500 vezes.
Sérias consequências
As sucessivas revistas íntimas trazem inúmeros prejuízos ao processo de reeducação ao qual o adolescente está submetido assim como a sua formação. “Esse procedimento macula muito o processo de ressocialização que a gente enseja”, analisa Novaes, classificando o procedimento como um dos aspectos mais perversos do sistema. Ele ainda questiona: “Que valores esse adolescente vai introjetar? Será o respeito aos seres humanos ou o ódio e a revolta? Ele vai se sentir uma pessoa ou um mero organismo onde se busca um objeto ilícito?”.
Uma consequência imediata decorrente desse procedimento é o adolescente deixar de participar das atividades. “Ele pode não se inscrever num curso ou em uma aula porque vai ter que passar por revista na ida e na volta”, exemplifica a advogada Vivian Calderoni.
Não só os adolescentes são vítimas das revistas íntimas, os familiares também passam pelo procedimento em dias de visitas. Tanto na Fundação Casa quanto no sistema prisional, os visitantes devem despir-se, realizar agachamentos e mostrar as partes íntimas antes de entrarem. O ritual deve ser cumprido por todos, desde bebês que têm a fralda retirada até senhoras de 80 anos, passando por mulheres que, se utilizarem absorvente íntimo, devem retirá-lo na frente da agente. Dados da Secretaria de Administração Penitenciária indicam que cerca de 10% dos visitantes têm menos de 12 anos.
Conhecido como “revista vexatória” pelos seus críticos, o procedimento tem como finalidade evitar a entrada de objetos ilícitos nas unidades. Entretanto, os dados revelam que pouco é encontrado com os familiares. No sistema prisional paulista, das apreensões de drogas em 2012 menos de 10% estavam com visitantes. Já com relação a celulares menos de 5% foram apreendidos nas revistas íntimas. Os números da Secretaria de Administração Penitenciária mostram que do universo de cerca de três milhões de visitas, em 2012, houve 783 casos de apreensões de celular ou droga, sendo que não há registros de armas.
“A revista íntima não é um mal necessário. Ela é uma abominação absolutamente desnecessária, é um mecanismo de opressão”, afirma o defensor Novaes. “Sou contra a revista íntima de uma pessoa pelo fato de ser parente de quem está preso. As famílias não podem ser punidas mais uma vez”, complementa. O defensor público ainda explica que a prática não encontra respaldo na legislação brasileira e é uma afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), à Constituição e aos tratados internacionais que o Brasil é signatário.
“Meu filho não é bandido.”
Confira o depoimento da paulistana A., mãe de dois filhos, profissional de vendas e estudante de Direito, publicada na Agência Pública.
A prática é também rechaçada por diversas organizações como a ONG Conectas e a Pastoral Carcerária, ligada à Igreja Católica. Para a advogada Vivian Calderoni, a revista íntima é um desrespeito à dignidade humana e à Constituição. “Ela acontece numa perspectiva em que a humilhação e a pena perpassam o condenado, o que é vedado”, afirma Vivian.
A principal consequência das humilhações vivenciadas por muitos familiares é a redução do vínculo familiar, considerado essencial no processo de ressocialização tanto do preso quanto do adolescente privado de liberdade. Os entrevistados relatam que é muito recorrente os familiares deixarem de realizar as visitas para não terem que passar pela revista íntima. Isso ocorre, muitas vezes, a pedido do próprio preso ou adolescente que não desejam submeter seus familiares — em geral a mãe, tia, avó ou namorada — a esse procedimento.
Em busca de mudanças
Algumas iniciativas buscam mudar o panorama ao qual os familiares são submetidos. Em cidades como Joinville, em Santa Catarina, e no estado de Goiás a revista íntima já foi abolida e os visitantes são submetidos a outros métodos de inspeção, como scanner corporal e detector de metais. Há experiências também em que os visitantes não adentram o sistema prisional. Assim, quem passa pela revista íntima é o preso que se dirige a um setor específico para a visita.
Na cidade de Varginha, no interior de Minas Gerais, o projeto Mães que Cuidam, desenvolvido no Núcleo de Capacitação Para a Paz (Nucap), foca nos direitos de crianças e adolescentes, filhos de mulheres encarceradas. Criada há cerca de quatro anos, a iniciativa permite que as mães detentas tenham contato diário com os filhos fora do espaço prisional. Assim, as crianças não se submetem à revista íntima e nem convivem com esse ambiente.
Tanto na Assembleia Legislativa de São Paulo quanto no Congresso Nacional tramitam propostas que regulamentam a revista. No Senado, o Projeto de Lei (PL) 480/2013 determina que os visitantes sejam submetidos à revista eletrônica, como raio X, scanner corporal e detector de metais. Em somente algumas exceções poderá ser realizada a revista manual, sendo proibido o desnudamento ainda que parcial. Atualmente, o texto está sendo analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e, se aprovado, será encaminhado para a Câmara dos Deputados.
A advogada Vivian explica que o projeto é fruto de um grupo de trabalho formado dentro do governo federal com a participação da sociedade civil e que ele não deve encontrar resistência. “A perspectiva é positiva, mas é urgente que o Senado aprove e mande para Câmara, onde esperamos que passe sem emendas.” Já na Assembleia Estadual Paulista tramita o PL 797, que tem um teor semelhante.
Em relação à revista íntima nos adolescentes internados, os esforços da sociedade civil estão apenas começando, uma vez que a prática era pouco conhecida. O defensor público Marcelo Novaes conta que a Fundação Casa não tem se mostrado aberta ao diálogo sobre o tema. A partir de agora, segundo Novaes, devem ser realizadas novas audiências públicas e pretende-se encaminhar uma denúncia ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Para ele, a revista íntima devia ser extinta. “Ela provoca grandes prejuízos e traumas psíquicos terríveis. Somente deve ser realizada quando houver uma suspeita concreta e só por médicos”.