Créditos: Divulgação/Cidade de Deus -10 anos depois
Juliana Sada, do Promenino com Cidade Escola Aprendiz
Numa rápida zapeada pela televisão podemos ver crianças e adolescentes atuando diante das câmeras. Alguns estão tentando vender fraldas, brinquedos ou refrigerantes. Outros protagonizam novelas ou apresentam programas voltados ao público infantil. Crianças e adolescentes também marcaram o cinema brasileiro. Quem não se lembra dos meninos de “Cidade de Deus” ou do garoto de “Central do Brasil”?
Apesar de ser comum, o trabalho de crianças e adolescentes no meio artístico ainda é alvo de polêmicas. Há controvérsias sobre se a atividade deveria ocorrer ou não, e a partir de qual idade seria permitida. Entre os que admitem o exercício do trabalho artístico, ainda debate-se quem deve autorizar, em quais situações deve ocorrer e quais cuidados devem ser tomados para que os direitos das crianças e adolescentes sejam protegidos.
Atualmente, o debate se dá em torno do projeto de lei (PL) 3974/12, do deputado federal Manoel Junior (PMDB/PB). A proposta prevê que a Justiça do Trabalho seja a instância responsável por autorizar o trabalho infantil artístico, e não mais a Justiça da Infância e Juventude.
Quem decide?
A mudança é defendida pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), que reivindica para si a competência de analisar os pedidos de alvará para trabalho infantil artístico. “O juiz do trabalho é quem vai analisar as consequências desse trabalho. Eles
os juízes
estão muito mais afeitos à discussão e aos problemas que podem vir decorrentes dessas autorizações”, defende a ministra do TST, Kátia Arruda.
Outros projetos de lei
Tramitam na Câmara outros dois PLs sobre a questão.
– PL 4253/2012: determina que tanto o Juiz do Trabalho quanto o Juiz da Infância podem emitir a autorização;
– PL 4968/2013: suprime o artigo da CLT que permite o trabalho infantil artístico.
A ex-diretora de cidadania e direitos humanos da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Sandra Bertelli, explica que quando o pedido de autorização para o trabalho artístico chega ao juiz, já existe um contrato inicial. Ou seja, há uma relação trabalhista e, por isso, seria de competência da Justiça do Trabalho. “Há uma demanda do alvará para legalizar aquela prestação de serviço, para formalizar isso. A competência para analisar todas as questões que orbitam em torno da relação de trabalho é da Justiça do Trabalho”, defende.
O advogado e membro do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH), Carlos Nicodemos, discorda da análise realizada pelas magistradas. “Entendendo o trabalho protegido e o combate ao trabalho infantil dentro da lógica de proteção integral, o melhor fórum de competência seria a Justiça da Infância e Juventude”, afirma o advogado, que é representante do MNDH no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Para ele, “a Justiça do Trabalho foca no trabalho, enquanto na Justiça da Infância o ponto focal é a criança”.
A mudança proposta pelo PL 3974 é defendida pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Fnpeti). De acordo com a secretária-executiva da entidade, Isa de Oliveira, “a Justiça do Trabalho tem se mostrado muito mais comprometida e com um diálogo aberto no sentido de proteger os adolescentes e de ter uma posição firme contra o trabalho infantil”. Para Nicodemos, essa é uma visão muito pragmática da questão: “a questão da sensibilidade não pode ser confundida com a questão da capacidade ou da própria competência”.
Exceções e condições para o trabalho infantil artístico
“A primeira coisa que deve ser observada é que o trabalho infantil, inclusive o artístico, é proibido”, afirma o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), Rafael Marques, que encabeça a Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do MPT. Marques afirma que “excepcionalmente, se admite a participação de crianças e adolescentes desde que sua participação seja essencial para o desempenho da obra artística”.
Kátia Arruda defende que mesmo dentro dessa possível exceção deve haver muito rigor. “Tem que haver uma autorização
da Justiça
, que deve ser individual, não pode ser coletiva, tem que ter toda uma observância de proteção integral da criança e adolescente”, afirma a ministra, que integra a Comissão para a Erradicação do Trabalho Infantil do TST.
Ainda não há uma definição oficial em relação às situações em que está permitido o trabalho infantil artístico e quais condições devem ser garantidas no ambiente de trabalho. A ex-diretora de cidadania e direitos humanos da Anamatra, Sandra Bertelli, afirma que atualmente “boa parte dos alvarás é concedida sem um cuidado maior na apreciação do que esse trabalho pode gerar, que tipo de consequências, em que meio o adolescente vai ser inserido, quais os impactos psicológicos e de formação educacional e da própria vida”.
O procurador Rafael Marques defende alguns critérios no momento dessa análise: “é preciso observar se há autorização dos pais, compatibilidade com o horário de estudo, se há um acompanhamento psicológico e médico daquela criança”. Kátia, do TST, afirma que é preciso observar se há “algum conteúdo educativo, que ele
o trabalho
de alguma maneira contribua, ou que não atrapalhe o bom desenvolvimento físico, mental e moral da criança”.
Na labuta
Levantamento do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) revela que, entre 2005 e 2010, foram concedidos 33 mil alvarás para trabalho a crianças e adolescentes com menos de 16 anos. “Em tese, essa autorização não deveria ocorrer, apenas em situações excepcionais. Entretanto, há autorizações para adolescentes trabalhar em construções civil e em lixões”, frisa Isa de Oliveira, do Fnpeti.
Entre os 33.173 alvarás emitidos entre 2005 e 2010, 1.720 foram para pessoas com menos de 14 anos, sendo:
– 131 para crianças de 10 anos
– 350 com 11 anos
– 563 com 12 anos
– 676 com 13 anos
*MTE
A ministra do TST, Kátia Arruda, questiona os números elevados dos alvarás concedidos para o trabalho infantil. “Só em 2011, foram 3.134 alvarás que só poderiam ser concedidos para a hipótese de trabalho artístico. É um numero absolutamente excessivo”, afirma. A magistrada explica que não há fundamento legal para essas autorizações, “não é permitido o trabalho abaixo dos 16 anos, salvo na condição de aprendiz ou na hipótese do trabalho artístico”.
Carlos Nicodemos, do MNDH, considera o Estatuto da Criança e do Adolescente muito “tímido” em alguns capítulos, como o que se refere ao trabalho infantil. “O tema do trabalho infantil opera nessa contradição do Estado brasileiro ser um Estado liberal. O que isso significa? Que as normas estão totalmente vinculadas ao mercado”, explica Nicodemos. “Isso naturalmente requer um contínuo processo de sensibilização e mobilização dos juízes para que o trabalho infantil possa não mais ocorrer”, acredita