Como a comunidade quilombola-indígena Tiririca dos Crioulos utilizou-se de ferramentas digitais para produzir um acervo de seus saberes e ritos.
Como a comunidade quilombola-indígena Tiririca dos Crioulos utilizou-se de ferramentas digitais para produzir um acervo de seus saberes e ritos.
Quando chove no pé da serra de Arapuá, em Pernambuco, tudo para, como se tempo fosse ditado pelos intervalos entre terra seca e água rara. As oficinas na comunidade quilombola-indígena Tiririca dos Crioulos eram interrompidas porque não havia quem ficasse nelas: o aprendizado migrava para fora, as mãos atarefadas na roça e o humor alterado pelas intempéries. Os saberes das comunidades tradicionais residem em outros tempos, mas podem, e fazem bem, em ocupar o tempo das mídias digitais para usá-las a seu favor.
A equipe dos pesquisadores Nivaldo Aureliano e Larissa Isidoro Serrabela, ao se reunir com os moradores do quilombo pernambucano para falar do edital do Ministério da Cultura (MinC) sobre a produção de um acervo digital com os saberes da comunidade, ouviram de uma das lideranças a frase que nomeou a iniciativa. ‘Que legal esse projeto, ele vai nos tirar do buraco e levar a gente para o mundo’. O buraco sendo a marginalidade de um povo sujeito a demoradas demarcações de terra, preconceito racial e isolamento histórico. E o mundo a chance de construir, junto aos pesquisadores, um acervo de preservação do simbólico. “Queríamos construir com a comunidade, e não para ela”, explica Nivaldo.
A comunidade de saberes orais se viu às voltas com gravadores e microfones, objetos de captura de algo que para eles sempre esteve no ar. Com base sólida na arte-educação, foram desenhadas as oficinas para capacitar os moradores a se registrarem. Larissa conta um pouco delas: “Usamos a arte-educação como metodologia de atuação, para pensar as atividades, os processos e formação, como se fossem rituais. Se vamos lidar com memória, por exemplo, buscamos interações artísticas e experiências que possam evocar essa memória de forma afetiva”.
Quando a internet e as tradições enraizadas em povos tradicionais se encontram, é claro que surgem questionamentos e receios: até onde se pode adentrar nas culturas e costumes históricos? O quanto pode ser compartilhado? Para Nivaldo, é fundamental que os quilombolas, os indígenas e os ribeirinhos tenham contato com o universo e as ferramentas digitais, nem que seja para entender que não querem ter: “A internet possibilita novas formas de diálogo, revitalizando e dinamizando a tradição, que não é imutável nem rígida”.
Tudo que foi digitalmente construído no blog Do Buraco ao Mundo: segredos, rituais e patrimônio de um quilombo indígena passou pelo crivo e mãos dos moradores de Tiririca dos Crioulos. “Se produzíamos uma foto ou um vídeo, mostrávamos e eles diziam ‘isso não queremos compartilhar’, ótimo. O edital do MinC prevê acessibilidade e compartilhamento de coisas que interessam somente aos sujeitos envolvidos”, conta Nivaldo. O material não serve somente para o exterior: gravar os saberes é um processo autoconhecimento para os quilombolas, que enfrentam questões políticas importantes como a regularização fundiária.
Da riqueza do processo de se autogestionar, de se reconhecer e ganhar novas ferramentas, a educação no século XXI e a educação patrimonial acontecem no dividendo de saberes. Segundo Nivaldo, por muito a educação patrimonial esteve atrelada aos conhecimentos formais e as noções de patrimônio edificadas em cal e pedra. O trabalho em Tiririca dos Crioulos fala de outra educação patrimonial, não a do colonizador, e sim de habitantes marginalizados histórica e socialmente no país. “A educação patrimonial nos ensina que vale a pena lutar. Além do cimento, reconhecer os saberes, as memórias e os jeitos de fazer, aquilo que você não consegue nunca colocar no papel, até porque esse patrimônio é dinâmico e muda constantemente”.
As oficinas culminaram em um documento sonoro de mais de três horas de duração, contendo manifestações culturais como cantos e rituais. O trabalho está disponível no blog, onde também se tem acesso a vídeos, aos livros virtuais e a todo trabalho que a equipe de Nivaldo, Larissa e dos quilombolas produziram. Recentemente, o projeto foi contemplado com o edital Rumos, do Itaú Cultural.