Criado por estudante pernambucana, a iniciativa Poesia Compilada busca mesclar as linguagens poéticas e computacionais em prol da aprendizagem.
#include “poesia” #include “manifesto”. Esse conjunto de palavras e sinais formam a primeira linha de códigos do manifesto do projeto Poesia Compilada, que busca mesclar as linguagens do poema e do computador com a intenção de ensinar alunos de escolas públicas a programar.
Neste 20 de outubro, Dia Nacional do Poeta, apresentamos a iniciativa criada por Soraya Roberta dos Santos Medeiros, doutoranda em ciências da computação pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Ela teve início em 2012 em Caicó (RN), onde a jovem estudava Sistemas da Informação. Em uma das atividades do curso, teve o desafio de criar um gênero textual que envolvesse a área da computação. Foi quando passou a trabalhar em uma proposta poética para abordar um tema bastante complexo: a programação.
Algoritmo como solução de problemas
“Queria falar sobre algoritmos por meio da poesia. Em uma estrutura poética, posso inserir elementos de algoritmos que são próprios do pensamento computacional, como abstração, decomposição e reconhecimento de padrões, e consigo falar sobre diversas temáticas, como consciência de classe, homofobia, racismo, feminismo e moradia”, aponta Soraya. “No trabalho com algoritmos, a gente basicamente resolve problemas. E a área de ciências humanas, no geral, discute as questões da sociedade, então o projeto reúne esses dois elementos.”
De uma maneira inovadora, o Poesia Compilada busca apoiar estudantes a compreender como utilizar a linguagem de programação na construção de algoritmos. “Ele não é só uma metodologia de ensino, mas uma concepção que envolve mostrar como áreas que parecem distintas podem conversar. Isso leva a humanidade para o centro do processo de ensino-aprendizagem, mesmo de um tema computacional”, opina a doutoranda.
A metodologia utiliza versos de poesias brasileiras para guiar o ensino de algoritmos. Além disso, incentiva que os estudantes escrevam sobre seus problemas cotidianos, transformando suas realidades em estrofes – que, por sua vez, vão ganhando códigos de linguagem computacional, como o poema “E daí se sou mulher e programo?”, demonstrado em uma placa de suporte de sistema (veja mais no vídeo a seguir).
Para ela, a educação brasileira ainda não sabe como ensinar algoritmos. “Quando falamos de algoritmo, estamos falando de algo comum ao ser humano. Afinal, cada um de nós tem uma forma de resolver um problema: em uma turma de 25 alunos, você vai ter 25 soluções diferentes, mas infelizmente ganhou força a ideia de que só há uma resolução possível. Isso corta a criatividade e engessa as pessoas, afastando-as da computação.”
Poesia Compilada: desconstruindo o mito sobre os códigos
Em 2022, o Poesia Compilada completa uma década desde a sua concepção. Nessa trajetória, a iniciativa se transformou em pesquisa na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e foi aplicada em duas escolas públicas de Jardim do Seridó (RN), como ação de extensão, alcançando mais de 120 estudantes. Segundo Soraya, os resultados no aprendizado eram visíveis, com melhora na escrita e no desenvolvimento de pensamento crítico, gerando impacto também na assiduidade em sala de aula.
A intenção, no entanto, é que o Poesia Compilada ganhe mais capilaridade. “Costumo receber diariamente várias mensagens de professores pelo Brasil querendo aplicar”, revela Soraya. No início desse ano, ela criou um financiamento coletivo para viabilizar uma plataforma de cursos, gratuita e online, que consiga formar educadores com mais efetividade.
A iniciativa também dialoga com uma das diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC): a quinta competência, que discorre sobre Cultura Digital e defende o pensamento computacional como um dos eixos estruturantes desse conceito.
Existe a dificuldade de relacionar o pensamento computacional com problemas do cotidiano dos estudantes. Isso desmotiva. Quando percebi essa lacuna, elaborei esse projeto para levar à Educação Básica. Que os alunos possam, desde cedo, trabalhar com algoritmos e mudar a concepção que se tem sobre eles.”
Computação desplugada
Para indicar as possibilidades de transformação que podem surgir a partir do projeto, Soraya Roberta também relembra um pouco de sua própria trajetória.. Filha de pais analfabetos, que enfrentaram a seca e graves dificuldades econômicas no sertão do RN, foi através de uma tia, professora de língua portuguesa, que ela desde cedo teve acesso à literatura. “Com três anos eu já estava no processo de alfabetização, e desde a infância eu gostava muito de ler e de escrever poemas falando sobre coisas que eu vivenciava.”
Em sua cidade, porém, o acesso a computadores era praticamente inexistente: só estavam em repartições públicas ou em casas de pessoas ricas. “Desde lá, pensava sobre como eu poderia utilizar essa ferramenta.” Foi então que, em 2007, inaugurou-se o primeiro Instituto Federal em sua região, e ela teve acesso ao universo da informática.
Ela afirma, contudo, que nem sempre é preciso acesso a recursos computacionais e tecnológicos para se ensinar e aprender a linguagem dos algoritmos. “A computação desplugada é uma possibilidade real. Já desenvolvi o Poesia Compilada com alunos da minha cidade natal, que não tinham computador em sala de aula. Foi preciso lápis e papel para desenvolver. É uma forma também de demonstrar que o ensino não está preso a um objeto específico, e vai muito além, pois é capaz de se adaptar a qualquer realidade”, defende.
“Eu acredito que o computador ajuda e potencializa a criatividade, mas você não deve se prender a ele para desenvolver um algoritmo em sala de aula, mas sim ao processo de ensino que está em seu entorno. O Poesia Compilada traz justamente isso: o trabalho de questões humanas por meio de sequências finitas de passos lógicos”, finaliza.