Por muito tempo, o setor de tecnologia no Brasil avançou sem refletir a pluralidade da sociedade. A baixa representatividade de grupos minorizados, como mulheres, negros, LGBTQIAPN+ e pessoas com deficiência, sempre foi uma marca do universo da tecnologia, especialmente nas áreas técnicas e nos cargos de liderança. Hoje, esse cenário começa a dar sinais concretos de mudança.
Empresas, organizações da sociedade civil e coletivos vêm adotando políticas afirmativas e práticas inclusivas que não apenas ampliam o acesso, mas também criam ambientes mais seguros e acolhedores. A diversidade, antes vista como um desafio, passou a ser reconhecida como um motor de inovação, criatividade e resultados. E os primeiros sinais dessa transformação já aparecem nos dados.
Segundo o Censo de Diversidade da Brasscom (2024), mais da metade (57,5%) dos profissionais LGBTQIAPN+ considera o setor das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) inclusivo. O dado é positivo, mas contrasta com outros indicadores que revelam desigualdades persistentes. Apenas 29,6% dos(as) profissionais em tecnologia se identificam como negros(as), número distante dos 55,5% da população brasileira, segundo o IBGE.
A presença de mulheres negras é ainda mais reduzida: representam apenas 11,5% do total de profissionais no setor, enquanto homens negros somam 18,1%. Nos cargos de liderança, a hegemonia branca se mantém: 69,0% dos homens e 72,7% das mulheres em posições de chefia são brancos.
Desigualdade estrutural nas lideranças
A disparidade se acentua à medida que se sobe na hierarquia. Apenas 34,1% das mulheres estão em cargos de diretoria e gerência. Nas áreas técnicas, essa participação cai para 20,9%, enquanto nas funções administrativas chega a 63,4%.
O estudo “Panorama da Liderança Tech no Brasil 2023/2024”, da Strides Tech Community, revela ausência total de mulheres e pessoas negras em diretorias seniores, superintendências e presidências. Mulheres negras, o grupo mais sub-representado, permanecem em posições intermediárias, e enfrentam a maior desigualdade salarial. Segundo o levantamento, líderes mulheres podem ganhar até 55% menos que homens na mesma função, diferença ainda mais acentuada para mulheres negras.
Quando o olhar se volta à comunidade LGBTQIAPN+, os dados mostram que 10,9% dos(as) profissionais do setor se identificam como pertencentes ao grupo. A boa notícia é que 57,5% desses profissionais consideram seu ambiente de trabalho inclusivo, destacando respeito à individualidade e melhoria no clima organizacional.
A lacuna é mais evidente quando o recorte é de pessoas com deficiência (PCD). Apenas 3,7% da força de trabalho se declara PCD, com predominância de deficiência física (44,2%) e visual (25,8%). A maioria ocupa cargos de assistente e auxiliar, o que evidencia obstáculos para a ascensão profissional e para a igualdade de oportunidades.
O setor também enfrenta desafios geracionais: 54% dos profissionais têm entre 19 e 29 anos, enquanto apenas 3% têm mais de 50 anos (todos homens). Em contrapartida, destaca-se o alto nível de escolaridade: 49% dos(as) profissionais têm pós-graduação, mestrado ou doutorado.
Avanços e ações afirmativas
Apesar dos desafios, há sinais claros de progresso. Entre dezembro de 2023 e junho de 2024, a presença de mulheres negras aumentou 7,3%, e a de homens negros, 6%, nas empresas de TIC monitoradas pela Brasscom. Nos últimos cinco anos, a contratação de mulheres em cargos de liderança cresceu 1,7%, superando a média nacional (1%).
Esses avanços refletem iniciativas do setor privado, ONGs e coletivos como PrograMaria, Black in Tech, Meninas Digitais e PretaLab, que atuam há mais de uma década em ampliar o letramento digital e a representatividade de mulheres e pessoas negras. Ainda assim, a presença de mulheres em cargos de diretoria e gerência segue em torno de 35,6%, e de profissionais pretos/pardos, 16,8%. A formação básica e a permanência no mercado de trabalho continuam como barreiras centrais.
Diversidade como estratégia de inovação
Equipes homogêneas tendem a soluções repetitivas e pouco inovadoras. Já a pluralidade impulsiona ideias, criatividade e até resultados financeiros – algo cada vez mais respaldado por pesquisas e especialistas. A diversidade deixou de ser apenas uma pauta ética e social: tornou-se um diferencial estratégico para as empresas que desejam crescer de forma sustentável.
O Plano Brasil Digital 2030, entregue pela Brasscom ao Governo Federal, aposta na inclusão digital e na redução dos descompassos regionais e sociais para consolidar avanços. Programas de contratação afirmativa, vagas exclusivas e mentorias para profissionais minorizados são passos apontados como essenciais para uma diversidade sustentável.
Casos que inspiram transformação
Algumas empresas já apresentam avanços concretos. Em 2025, o programa de trainees da Vivo bateu recorde: 56% dos 36 selecionados são negros, escolhidos entre 35 mil inscritos. O Programa Jovem Aprendiz abriu mais de 130 vagas, metade delas destinada a jovens negros e todas elegíveis para PCD.
Um levantamento da FGV em parceria com o jornal Folha de S. Paulo mostrou que, na Vivo, 33% dos cargos de média liderança são ocupados por colaboradores pretos, pardos e indígenas, e 35% por mulheres. Outro dado relevante é a inclusão de pessoas trans: entre 2022 e 2023, o número de profissionais trans cresceu 54%, chegando a 108 colaboradores. Em 2023, 2,7 mil vagas foram abertas para talentos diversos, incluindo pessoas LGBTQIAPN+, PCD e com mais de 50 anos.
“Quando cheguei na área, eram 7% de mulheres na equipe. Hoje já estamos em 35%. Ainda sentimos a síndrome da impostora, mas é nosso dever engajar mais mulheres nas posições de liderança. A Vivo oferece espaço seguro para isso: aqui, a gente pode estar no lugar que quiser”, relata Adriana Lika, diretora de inteligência artificial da Vivo.
A força das histórias pessoais
Os avanços se refletem diretamente no cotidiano dos colaboradores. Rogério Cristiano do Nascimento, analista de dados, lembra que, em experiências anteriores, precisou esconder sua sexualidade. “Durante toda a minha trajetória anterior, eu separava minha vida pessoal da profissional. Não falava abertamente sobre minha sexualidade, porque acreditava que o mundo corporativo não aceitava. Já vi lideranças LGBTQIAPN+ sendo diminuídas em reuniões simplesmente por serem pessoas gays. Então, quando entrei na Vivo, foi como um choque positivo: eu realmente poderia ser quem eu sou. A partir daí, comecei a me desenvolver profissionalmente, recebendo promoções e conquistando espaço. Ser quem somos reflete diretamente no nosso trabalho. Um ambiente seguro é essencial para o crescimento”, reflete Rogério.
A desenvolvedora Roberta Alves de Oliveira, pessoa negra e não-binária, reforça como o acolhimento e os grupos de apoio foram cruciais para tornar sua jornada profissional mais agradável e assertiva. “Na tecnologia, encontrei oportunidade de me conhecer melhor, de interagir com outros grupos dentro da empresa e de me desenvolver ainda mais no ambiente de trabalho. Entrei em um time que me apoia muito e me ajuda a superar minhas dúvidas e dificuldades no dia a dia”, afirma Roberta.
O acolhimento também estimula Roberta a sonhar com cargos de gestão. “Quero chegar a posições de liderança, talvez até à diretoria. Seria muito importante representar mulheres negras dentro da área de tecnologia. Ainda sinto falta de representatividade de pessoas não-binárias ou PCD em cargos de liderança, mas sigo determinada a buscar esse espaço”, revela.
Para Rogério, fazer parte de redes de apoio foi essencial. “Logo na minha primeira participação num dos grupos, fui muito bem acolhido. Após falar no microfone, os líderes me procuraram para dar boas-vindas e oferecer suporte. Foi quando entendi que não estava sozinho. Percebi que não era o único a ter receios diante do preconceito no mercado de trabalho. É muito importante olhar ao redor e ver que existem pessoas compartilhando dessa jornada”, conclui.