ECA: ARTIGO 228 / LIVRO 2 – TEMA: Dos Crimes
Comentário de Felício Pontes Junior
Rio de Janeiro
Na linha de frente dos direitos humanos fundamentais inseridos no Estatuto estão aqueles referentes à vida e à saúde, especificados nos arts 70 e ss., cuja violação, em alguns casos, configura ilícito penal, v.g .. , o artigo em epígrafe.
Com efeito, os estabelecimentos de atenção à saúde de gestante, sejam públicos ou privados, devem observar certas regras de importância capital para uma gestação sadia e, em conseqüência, desenvolvimento normal do neonato, sob pena de o encarregado de serviço ou dirigente de estabelecimento agir criminosamente (crime omissivo puro).
Sua origem assenta-se na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que enfatiza, em seu art. XXV, item 2, primeira parte, o direito a cuidados e assistência especiais para com a maternidade e a infância. O desrespeito dessa norma internacional no Brasil contribuiu para o alarmante índice de mortalidade infantil, apesar da redução ao longo da década passada (cE. Fundação IBGE, Crianças e Adolescentes. Indicadores Sociais, Rio, 1989), levando o legislador a considerar a infausta conduta como crime.
O art. 228 descreve duas condutas, as quais serão estudadas separadamente, pois nem sempre os elementos que as compõem são coincidentes, salvo no tocante ao sujeito ativo, cuja identificação é feita pela própria norma na figura do encarregado do serviço ou dirigente de estabelecimento de atenção à saúde de gestante, sendo prudente que ambos sejam indiciados, dada a possibilidade de serem participantes, o que será verificado no curso do inquérito ou até mesmo na ação penal.
Consiste a conduta da primeira parte em não manter registro das atividades desenvolvidas no atendimento à gestante, através de prontuários individuais, pelo prazo de 18 anos. Reconhece o legislador, assim, a relevância da manutenção desse documento para o bem protegido – objeto jurídico – qual seja, a saúde da pessoa que veio à luz, da mulher gestante ou que deu à luz.
Nesse sentido, o artigo não protege apenas a saúde da gestante, como se poderia pensar apressadamente, mas também da nova pessoa e da mulher que deu à luz. Desta, porque pode haver a necessidade, em uma segunda gestação, das informações da primeira. Daquela, pessoa que veio à luz, porque poderá se manifestar a necessidade das informações do período pré-natal no curso de seu desenvolvimento psicológico, v.g., pelo uso de certos medicamentos.
Assim, podem ser sujeitos passivos: pessoa que veio à luz, mulher gestante ou que deu à luz, pois qualquer deles pode ser titular do bem ou interesse protegido.
A segunda conduta descrita pelo artigo em estudo diz respeito ao não fornecimento “à parturiente ou a seu responsável, por ocasião da alta médica, (de) declaração de nascimento, onde constem as intercorrências do parto e do desenvolvimento do neonato”. A única modificação feita em relação aos elementos da análise acima refere-se à exclusão da gestante como sujeito passivo, pois a consumação do crime somente se dará após o parto, por ocasião da alta médica. No mais, considera-se o comentário exarado nos parágrafos precedentes.
Por fim, prevê o legislador a modalidade culposa na exteriorização da conduta do agente, e, para verificá-Ia, necessário se torna saber se este observou os cuidados exigidos pela norma em seu comportamento ou se agiu com imprudência, negligência ou imperícia. Ressalta-se que a construção tribunalícia ensina que a omissão de cuidados extraordinários que figuram além da exigibilidade e previsibilidade na ocorrência do fato típico situa-se no campo do fortuito, e não da conduta culposa (RT 280/485).
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury
ECA: ARTIGO 228 / LIVRO 2 – TEMA: Dos Crimes
Comentário de Cecília Simonetti
Estudos e Comunicação em Sexualidade e Reprodução Humana – ECOS
O art. 228 do Estatuto remete, dentre outras coisas freqüentemente levantadas nos estudos epidemiológicos sobre mortalidade materna, cuja taxa é um indicador das condições de saúde e da qualidade de vida da população em geral.
O coeficiente da mortalidade materna é calculado a partir do número de mortes por causas maternas em um ano e do número de nascidos vivos no mesmo ano. No Brasil não se sabe corretamente qual é a taxa de mortalidade materna, embora calcule-se que seja bastante elevada, em torno de 200 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos. Duas razões explicam a dificuldade de se obter um índice mais preciso: a má cobertura dos registros de nascimento e o sub-registro dos óbitos em vários Estados do País.
Também são limitadas as conclusões sobre as causas das mortes maternas – e, conseqüentemente, as ações para combatê-Ias – porque o preenchimento do atestado ou declaração de óbito é deficiente ou, mesmo, inexistente. Os prontuários individuais, que poderiam, então, contribuir nas investigações sobre as causas dessas mortes, apresentam, igualmente, problemas de sub-registro e baixa qualidade do preenchimento.
As complicações da gravidez, do parto e do puerpério aparecem em sexto lugar dentre as principais causas de morte em mulheres de 15 a 19 anos, segundo as Estatísticas de Mortalidade: Brasil, 7980, do Ministério da Saúde. Estas complicações, contudo, incluem aproximadamente 50 causas diferentes, classificadas internacionalmente. No Brasil, o sub-registro da informação nos prontuários dos serviços de saúde muitas vezes torna difícil identificar, dentre tantas, qual a causa que realmente determinou a morte de uma adolescente.
Diversos movimentos sociais e profissionais da área da saúde têm recorrido aos estudos epidemiológicos e aos registros nos prontuários para denunciarem as precárias condições da assistência médica e reivindicarem melhor qualidade nos serviços de atenção à saúde da mulher, aí incluídas as adolescentes. O art. 228 deste Estatuto é, portanto, um instrumento legal que poderá embasar ações que visem a concretizar o direito à saúde para uma parcela significativa da nossa população.
Este texto faz parte do livro Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, coordenado por Munir Cury