O Salvaguarda é um programa social que já impactou mais de 30 mil jovens e oferece mentoria a alunos de escolas públicas para ajudá-los em suas escolhas profissionais e acadêmicas.
Mais de 70% dos estudantes de universidades federais são de baixa renda. Apesar desse avanço obtido nos últimos anos últimos anos — especialmente por conta da Lei de Cotas, que reserva 50% das vagas para estudantes de escolas públicas — esse dado não reflete toda a realidade do Ensino Superior brasileiro. O estudante Vinícius de Andrade, 26, encontrou um cenário bem diferente ao ingressar na maior universidade da América Latina.
“Quando entrei na Universidade de São Paulo (USP), em 2015, passei por um choque de realidade. No meu bairro, eu convivia com a pobreza e a restrição, enquanto os meus colegas já tinham saído do país e frequentado lugares dos quais eu nunca tinha ouvido falar. A maior parte das pessoas naquele espaço não vinha do mesmo mundo que eu, e isso me incomodou profundamente”, relembra.
Nascido e criado no bairro Adelino Simioni, localizado na periferia de Ribeirão Preto (SP), o jovem cresceu observando as irmãs mais velhas trabalhando em tempo integral para tirar o sustento da família, sem oportunidade de estudar. Isso o motivou a trilhar um caminho diferente, muito embora não soubesse como faria para ser aprovado em uma universidade pública.
Na escola, Vinícius não lembra de ter refletido sobre seu projeto de vida ou recebido informações que o ajudassem nessa construção. Apenas no ano seguinte à conclusão do Ensino Médio, procurou um cursinho acessível para ajudá-lo a se preparar para o vestibular. Três anos depois, entrou na USP e desde então estuda para ser economista.
“No primeiro ano de graduação, fiz um levantamento em quatro escolas da cidade de São Paulo para entender por que estudantes de escolas públicas eram minoria em universidades públicas. O resultado me mostrou que não falta interesse, mas sim informação. Existe um gigante muro de desinformação que separa esses jovens do Ensino Superior e, consequentemente, de melhores oportunidades”, reflete.
Com o objetivo de ajudar cada vez mais jovens como ele a ocuparem esse espaço, Vinícius decidiu reunir esforços para transpor o muro de desinformação. Assim nasceu o Salvaguarda, rede de voluntários que se coloca à disposição para mentorear e acompanhar estudantes de escolas públicas de todo o Brasil em suas escolhas profissionais e acadêmicas.
Um ‘cursinho’ diferente
A ideia do projeto é incentivar os jovens a buscarem novas profissões que antes não faziam parte de suas realidades. “Com uma diversidade maior de vozes em espaços de tomada de decisão, o país todo se beneficia e pode avançar em uma velocidade compatível com a do nosso futuro”, define o criador do projeto. Para alcançar esse objetivo, o Salvaguarda conta com cerca de 1.250 voluntários.
A gestão dessa equipe fica a cargo de Vinícius, que os divide em grupos e cuida pessoalmente de todo o processo, desde a divulgação até a seleção. Atualmente, são 450 corretores de redação, 300 monitores e 500 tutores. A maior parte dos voluntários também estuda em universidades públicas, embora os estudantes da rede privada também possam participar. Para fazer parte do time, é obrigatório estar estudando ou ter concluído o curso referente a disciplina que irá tutoriar.
O diferencial da iniciativa está na proximidade entre os estudantes e os cursistas do Ensino Superior. “Gosto de frisar que o Salvaguarda não é apenas um cursinho, vamos além disso. Esse contato próximo, de forma horizontal, tem um poder muito grande de mostrar caminhos e desmistificar a ideia de que as pessoas que alcançam posições profissionais de destaque são magicamente inteligentes”, reforça o estudante de Economia.
Todo o acompanhamento é feito por meio de grupos no WhatsApp e outras plataformas de comunicação. Desde 2017, quando foi criado, o Salvaguarda já impactou cerca de 40 mil estudantes de todo o Brasil. No futuro, Vinícius conta que pretende transformar o projeto em um negócio social, para poder investir em uma equipe fixa e na melhoria das ferramentas oferecidas.
Os grupos do WhatsApp são divididos por “ferramentas”, que oferecem desde tutoria em disciplinas do currículo até psicólogos disponíveis para acompanhar a trajetória dos jovens. Caso algum dos estudantes tenha dúvidas sobre Biologia, por exemplo, é só procurar pelo grupo de mentores, deixar a dúvida e esperar até que os voluntários retornem pelo privado.
O maior desafio do projeto é a manutenção do fluxo de voluntários. Segundo Vinícius, é comum que os participantes se envolvam em projetos pessoais e abandonem a rede. Por isso, as redes sociais do Salvaguarda estão sempre atualizadas com os perfis de voluntários de que precisam.
Tentativas rumo ao Ensino Superior
O ano de 2020 representou para o Salvaguarda mais um passo na expansão do projeto. A pandemia de coronavírus, que por um lado impediu os encontros presenciais em São Paulo, por outro permitiu que a rede cruzasse a trajetória de jovens de todo o país. Foi o caso de Expedito Cesar, 20, morador do município de Santana, no interior do Amapá.
“Aqui na região Norte, sobretudo em municípios afastados da capital, os recursos não chegam de forma adequada e a educação é muito deficitária. Eu só percebi isso nos meus últimos anos de Ensino Médio, quando entendi que eu não conseguiria passar no curso de Medicina, que era o que eu queria”, relata o jovem.
Na tentativa de recuperar suas chances, Expedito foi até a capital Macapá procurar um cursinho preparatório para o vestibular. Com muito esforço pagou-o durante um ano, e lá teve a oportunidade de debater temas relevantes não apenas para o vestibular, mas também para sua formação como cidadão. Estudou pela primeira vez temas como História do Brasil, Primeira e Segunda Guerras Mundiais e Ditadura Militar.
Foram seis as tentativas de passar na prova do Enem e, mesmo quando passou a estudar por conta própria, Expedito viu os resultados melhorarem pouco a pouco. No início do ano passado, uma amiga indicou o contato de Vinícius, e então o Salvaguarda passou a fazer parte de sua trajetória rumo ao Ensino Superior. Na visão do jovem, o projeto o ajudou na parte prática, nas dúvidas do dia a dia e também o fez se sentir mais confiante.
Para o ano de 2021, o jovem colocou uma meta: passar na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). O resultado ainda não saiu, mas Expedito já sabe que com o seu desempenho no exame conseguiu ingressar na Federal da Bahia, de Alagoas, do Acre, do Pará, de Pernambuco, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro. Ele já tomou uma decisão: vai cursar Medicina na Universidade Federal de Santa Catarina, que é referência na área de atuação que escolheu.
“Recomendo que todos os estudantes de escolas públicas conheçam o projeto Salvaguarda e acreditem no seu próprio potencial. Nós temos que ser a transformação que ninguém espera, buscando ferramentas que possam não apenas transformar a nossa realidade, mas daqueles ao nosso redor”, finaliza o jovem, que pretende se tornar um voluntário do Salvaguarda no futuro.