Por meio de um paralelo entre ficção e realidade, o game Illis está sendo desenvolvido como uma forma lúdica de alertar sobre o feminicídio e combater a violência doméstica
As aventuras narradas nos jogos de videogame podem ir muito além do entretenimento. Com o intuito de ampliar o debate sobre uma causa fundamental para a sociedade, Tayla Tineu (22) e Mário Henrique Silva (22), traçaram um paralelo entre ficção e realidade ao desenvolverem um jogo que traz o feminicídio como tema principal.
Para abordar o tema, o jogo batizado Illis — que significa “por elas” em latim — conta a história de duas personagens de um livro de fantasia que, magicamente, vieram parar no mundo real. Tentando entender como isso aconteceu, Marie e John descobrem que não foram os únicos a sair do livro: os monstros que lá viviam agora estão à solta e representam uma ameaça para as mulheres do século XXI.
“Esse é um ponto importante da narrativa em relação ao tema, pois podemos abordar a violência e o feminicídio através de uma camada lúdica, quase infantil, sem despertar gatilhos nas mulheres que tenham passado por essas experiências”, explica Tayla.
Compromisso com a luta por direitos
Foi durante o quarto semestre do curso superior de Jogos Digitais da FATEC Carapicuíba, em São Paulo, que os estudantes tiveram a ideia de aproveitar um trabalho acadêmico interdisciplinar para criar um jogo social. Baseado em experiências familiares e relatos de outros amigos, colegas e professores, Mário e Tayla não hesitaram em escolher o feminicídio como tema.
“O objetivo do Illis é mostrar que mulheres têm voz e que não estão nessa luta por direitos sozinhas”, diz Mário Henrique.
O que começou como um trabalho interdisciplinar acabou transformando-se no projeto de conclusão de curso dos estudantes. A professora e empresária na área de games Érika Caramello, foi convidada para se tornar orientadora. Ela diz que o primeiro passo foi orientar os jovens a pesquisar, principalmente em coletivos feministas, sobre o ciclo do relacionamento abusivo e se aprofundar em termos como mansplaining, manterrupting e gaslighting.
“As primeiras agressões geralmente começam com brigas e discussões que atingem a escala de abuso psicológico, mas podem acabar em violência física. O mais alarmante é o que se segue: o pedido de desculpas, as promessas de mudanças que nunca são cumpridas, e o recomeço do ciclo do relacionamento abusivo, cada vez mais forte”, acrescenta a educadora.
Jogabilidade acessível
Os jovens contam que o design das personagens é inspirado em jogos antigos como Paper Mario. “Achamos legal absorver essa referência, considerando que os personagens saem de um livro na nossa trama e isso faz com que o usuário entenda quem eles são e de onde eles vêm”, complementa Mário Henrique. Já a narrativa segue a linha de Crossing Souls e Gris, ambos os jogos voltados para temas sociais.
A princípio, a primeira versão de Illis foi lançada usando a tecnologia de realidade aumentada para fazer com que o jogador tivesse uma imersão maior na história.
“Estamos adaptando as opções de jogabilidade para que o usuário possa ter a experiência sem acionar a realidade aumentada, porque entendemos que, infelizmente, ainda há uma desigualdade de acesso à tecnologia e à internet no Brasil. A ideia é ampliar o número de jogadoras de maneira sensível e acessível”, complementa a orientadora, Érika Caramello.
Conheça mais sobre as personagens de Illis
As personagens com as quais os protagonistas interagem ao longo do jogo foram baseadas em mulheres reais, que foram vítimas de violência ao redor do mundo. Algumas delas, inclusive, tiveram suas histórias contadas em noticiários.
Aisha: Aisha Mohammadzai, uma jovem afegã, tentou fugir da casa do marido e teve seu nariz e rosto mutilados pelo Talibã. A personagem é apresentada na primeira fase do game.
Xiao-li: A ativista chinesa Xiao Li pediu ajuda depois de ouvir o relato de uma familiar que sofreu agressão física durante a quarentena por conta da pandemia de coronavírus. A personagem representa a parente da ativista que também foi deixada sem comida junto com os filhos.
Francisca: Dona Francisca das Dores, que vive em Juazeiro do Norte (CE), foi agredida pelo filho porque não tinha condições de emprestar-lhe dinheiro. Não foi a primeira vez, mas as outras não se tornaram publicamente conhecidas.
Délia: A personagem, que teve sua identidade visual e seu nome alterados no game, foi baseada na história de um membro familiar de um dos estudantes. Quando criança, Délia sofreu abuso sexual e por muitos anos, como adulta, sofreu violência doméstica do ex-marido.
Retorno para a comunidade
Além de adaptar a jogabilidade, outra preocupação dos estudantes é fazer com que Illis seja mais do que apenas um game de alerta. A ideia é que ele represente uma alternativa para mulheres em situação de perigo, que podem encontrar no jogo instruções e canais de denúncia. Os canais 180 (Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência) e o 190 (Atendimento da População em situação de Urgência Policial), poderão ser acionados com o Botão do Pânico, que está em desenvolvimento.
“A gente sabe que para uma mulher que esteja em uma situação de violência, principalmente durante a quarentena, é muito difícil conseguir ajuda. Por isso, a ideia é que o botão esteja camuflado, mas que ajude as jogadoras a encontrarem uma saída”, afirma a orientadora.
A próxima versão do jogo será lançada para Android e iOS, e anunciada na página oficial. Mário e Tayla ainda estão buscando por investimentos de empresas brasileiras que já dialogam com a causa ou estejam dispostas a abraçar o projeto. A monetização ajudará na manutenção dos equipamentos e no desenvolvimento de novas versões, mas, sobretudo, garantirá que o jogo seja gratuito e acessível.
“Nós tivemos a chance de aprender e desenvolver jogos gratuitamente pela FATEC, agora achamos justo devolver isso em forma de um produto que vá gerar retorno para a comunidade”, conclui Tayla.