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23.11.2016
Tempo de leitura: 9 minutos

Volta às aulas: como as crianças de Mariana (MG) estão reconstruindo a identidade da escola após a tragédia que atingiu a cidade

Crédito: Divulgação
Por Cecília Garcia, do Promenino, com Cidade Escola Aprendiz

Era uma escola de corredores largos, por onde, através das janelas, podia-se ver a movimentação do pequeno distrito que a rodeava. Nas paredes, que nem se sabia tão frágeis quanto os cartazes de papel nelas colados, estavam os desenhos dos alunos. Poucos traços coloridos em formas de pessoas, mas por o serem, era possível conhecer os nomes e a família de cada um dos estudantes. Meninos e meninas que moravam tão perto da Escola Municipal Bento Rodrigues que de suas casas podiam ouvir o sinal tilintando. Latidos de cachorro, pipas aprumadas no céu e bicicletas circulando por ali compunham o cenário do subdistrito de 307 anos de idade.

Mariana é um município que, como tantos em Minas Gerais, nasceu do processo de extração de minérios instalado em meados do século 18 no Brasil, que tanto enriqueceu a corte portuguesa. Mais de 300 anos depois, quem enriquece é a Samarco – e, por consequência, a Vale e a empresa BHP Billinton, suas acionistas. Extraindo ferro, movimentava 80% das arrecadações de Mariana, tornando a cidade dependente de sua atuação. Bento Rodrigues, um dos subdistritos, ficava no caminho do complexo de barragens de rejeitos tóxicos imóveis, viscosos e alaranjados.

Quando duas dessas barragens cederam, no dia 5 de novembro de 2015, as cinco turmas da escola Bento Rodrigues estavam quase encerrando suas atividades. Era 16h30, e se ouvia no ar um burburinho esquisito, cada vez mais alto. A diretora da escola, Eliene G. dos Santos, percebeu uma movimentação atípica nas ruas. Não foi antes de o marido aparecer na porta da sala que chegou a informação do rompimento das barragens e da necessidade de se evacuar a escola.

Eliene correu pelos corredores, alertando os alunos e colegas, aos berros. “As crianças ficaram tão atônitas que não conseguiam sair do lugar. Não sei se eles pensaram que eu estava brincando, então tive de gritar para correrem. Conseguimos salvar todo mundo”. Do alto de morro, após cruzarem uma ponte que se quebrou como se feita de gravetos pela passagem de 62 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, ela observou a escola que dirigia desde 2013 ser engolfada pela massa ocre e sumir junto ao município.

O desaparecimento de uma comunidade que nasceu pelas mineradoras e se extinguiu também por suas mãos teve sua síntese na estrutura esquelética que sobrou da escola.

“Perdeu-se o chão”. Eliene assim descreve a tragédia não só fisicamente – Bento Rodrigues tornou-se inabitável e seus moradores foram relocados para hotéis na cidade de Mariana ou se abrigaram na casa de parentes de distritos próximos, incapazes de resgatar animais de criação ou geladeiras recém-pagas. Quando ela diz que ficaram sem chão, também o faz metaforicamente, porque a história se perdeu na enxurrada: Eliene não acreditou que fosse possível dar continuidade a um ano letivo tão despedaçado.

As imagens que ilustram a matéria são teasers do documentário Rastro de Lama. Projeto visionado por Aline Lata e Helena Wolfenson, o filme acompanha a história de dois moradores de Bento Rodrigues e sua luta para recuperar casa e vidas perdidas na onda de lama tóxica.
O documentário é um esforço para que a história do crime ambiental em Mariana e seus subdistritos não seja esquecida e para que a Vale, a Samarco e BHP Billinton sejam punidos.
O projeto está em fase de arrecadação no Catarse e depende de contribuição para ser finalizado. Confira, abaixo, o trailler.

https://youtube.com/watch?v=SyG8xq10Fyc

Processo de reconstução
Três dias após a tragédia, a Secretária Municipal de Mariana procurou Eliene em seu lar provisório e a convidou a pensar como continuar as aulas em 2015. Anunciou que não seria tarefa fácil, porque todos os alunos estavam muito assustados. Mas também entendeu: recuperar a escola seria um processo decisivo para que as crianças começassem a superar a tragédia. Depois de uma semana sem aulas, os estudantes da escola Bento Rodrigues retomaram suas atividades alocados na escola Dom Luciano.

“Vimos que as crianças aos poucos iam se recuperando, no ato de rever os amigos e os professores. Ficaram também muito felizes de sair do hotel, porque a criança da Zona Rural quer correr na rua, soltar pipa, nadar, andar a cavalo. Foi uma recuperação positiva do choque que estavam vivendo”. Contrariando as expectativas dos educadores e da própria diretora, durante novembro e dezembro os alunos compareceram às aulas com alta frequência, mesmo que isso significasse atravessar longas distâncias – as quais não estavam acostumados.

Para o ano de 2016, Eliene esperava que muitos pais optassem por matricular os filhos em escolas mais próximas de seus hotéis ou de suas residências provisórias; mas as crianças continuaram a querer estudar na provisória Bento Rodrigues. Está sendo um período sensível de adaptação. Turmas de Educação Infantil e Ensino Médio dividem a atenção de poucos professores e usam a escola durante o período da tarde. “É um desafio de coabitação”, desabafa Eliene.

Resgate de identidade
Uma escola rural exerce um papel diferente na comunidade do que uma escola do perímetro urbano, como explica Eliene. “Em toda comunidade pequena, a escola é uma referência. Quando o aluno está na cidade, até uma lan house pode ser referência para ele”. Para exemplificar as diferenças, ela relembra que, na primeira reunião de pais que organizou, a presença de mães e pais foi tão massiva que a diretora da escola Dom Luciano se espantou.

É justamente a identidade da escola e seu papel central no distrito que nenhuma lama tóxica pode soterrar. “Não queremos perder nossa identidade; os costumes, as tradições e as festas. Temos de manter a comunidade unida a partir da escola”. Lentamente, eles começaram a restituir práticas comuns à sua rotina. Retornaram os costumes da fila, de cantar o hino nacional às sextas-feiras e fazer orações antes das aulas.

A manutenção das práticas rurais também acompanha o otimismo de que a situação seja passageira, e que no prazo de um ou dois anos aconteça o reassentamento e a reconstrução do distrito Bento Rodrigues. “Nós não vamos continuar na cidade. Os alunos precisam entender que estamos morando nela provisoriamente, mas daqui um ou dois anos nós vamos voltar para nosso distrito. Então vamos ter nosso cantinho de novo, não podemos deixar se perder nossa cultura, porque depois para resgatá-la será complicado”, ela prevê..

Segundo nota exclusiva da Agência Pública, firmou-se um acordo que define como Samarco, a Vale a BHP irão determinar o auxílio e a reconstrução dos municípios afetados e o resgate ao meio-ambiente, que continua seriamente comprometido. O acordo foi feito sem a participação de nenhum dos moradores da cidade, e o destino da reconstrução de Bento Rodrigues, do Rio Doce e outros distritos de Mariana permanece nas mãos de quem a enterrou.

A infância ante a tragédia

Mesmo seguras em sua nova escola, as crianças e os adolescentes que presenciaram a tragédia de Mariana ainda se alarmam a qualquer barulho ou perturbação. A diretora Eliene relata que, em uma ocasião, a caixa da água encheu mais do que devia, provocando um barulho incomum. Crianças e adolescentes formados correram em desespero, em busca de abrigo.

O psicólogo Márcio Gagliato trabalhou com crianças em situações de desastre, como as da Faixa de Gaza e as afetadas pelo tsunami que atingiu o sudeste asiático em 2004. Para ele, é absolutamente fundamental acabar os com mitos de que as crianças se recuperam mais rápido em situações de tragédia, ou que têm mais capacidade de adaptação.

“É importante evitar suposições genéricas sobre a forma como as crianças vão responder a desastres, pois algumas terão grande tolerância e resistência, enquanto outros vão ser muito mais vulneráveis. Vários fatores estão em jogo, como o perfil psicológico da criança antes do evento, a qualidade da presença e vínculo de um adulto cuidador que o auxilie (ou sua ausência), o significado e consciência do desastre, a exposição direta ao desastre, perdas dos fatores de proteção (entes, rotina, amigos, bens), e assim por diante.”

Ele também aponta que, embora sejam experiências diferentes de Mariana, tanto em Gaza quanto no sudeste asiático, as pessoas estavam em um estado de medo generalizado, e isso afetava imensamente as crianças, deixando-as confusas e inseguras. Não evitar falar sobre o assunto é um primeiro passo para a recuperação. “É comum crianças fazerem perguntas sobre o ocorrido na proporção do quanto as afetam, e inclusive repetir as perguntas que as incomodam, mesmo que os cuidadores já tenham tentado respondê-las. Isso ajuda a expressar e elaborar seus medos e fantasias sobre a tragédia”.

Por fim, Marcio frisa a importância a escola e seu papel no apoio as crianças, “Eu me lembro de alguns desastres, que, por exemplo, professores foram os primeiros a receber suporte e capacitação para poderem lidar com as crianças no retorno as aulas. Nas primeiras semanas de aula, o foco não era o currículo normal como matemática ou ciências, mas integração de atividades inspiradas em ajudar as crianças, como jogos, brincadeiras, informação e atividades de expressão.”

No que concerne ao enfretamento da crise, ouvir a comunidade é vital: “Não se deve medir esforços para escutar profundamente as famílias e comunidades afetadas, e reconhecer seu protagonismo na identificação e construção dos mecanismos de suporte”.


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