A publicação Minas da Várzea retrata os desafios das mulheres de Parelheiros que fazem de tudo para conseguir praticar o esporte que amam
Apita o árbitro, rola a bola. Em campo, mulheres que antes mesmo de calçarem as chuteiras precisam sair driblando diariamente barreiras que passam por preconceito da família, situações de assédio, falta de tempo e espaço para treinar, e de dinheiro para conseguir pagar pela participação em torneios. O esforço vale a pena porque é ali, no campo esburacado, na partida sem regras rígidas de organização, que essas guerreiras exercem a maior de suas paixões.
A beleza e as dificuldades do futebol feminino de várzea foram retratadas na reportagem em HQ Minas da Várzea, publicada pela Agência Mural de Jornalismo das Periferias. Para produzir o material, a jornalista Priscila Pacheco, de 30 anos, foi até o distrito de Parelheiros, extremo sul da capital paulista, em direção à aldeia indígena do povo Guarani Mbya e ao campo de terra laranja do bairro Vargem Grande, regiões onde a cultura do futebol feminino é muito forte.
Acompanhada dos desenhistas Alexandre de Maio e Magno Borges, a repórter acompanhou a performance do time Minas do Toque, que na complexidade de suas jogadoras traz histórias preciosas como a de Josiana, que jogou grávida e voltou ao campo 40 dias após o parto. Ou de Lucivânia Silva Lima, que faz faxina pesada de segunda a sexta e mesmo assim tem energia para jogar futebol em dois times, aos sábados e domingos. “Eu amo jogar, largo qualquer compromisso para estar em campo. Sou atacante, mas pego até no gol quando precisa. Só o jogo é que não pode parar”, diz.
“O futebol é fio condutor para falarmos de várias coisas, como discussão de gênero, falta de saneamento básico nas periferias e também sobre as transformações do território, de como São Paulo vai se modificando do centro às regiões mais afastadas”, conta Priscila.
A escolha da HQ foi a forma encontrada de instigar o debate por meio do jogo entre imagens e palavras, como explica Magno. “Nós não temos representação gráfica para a periferia. Usamos a HQ para buscar esse viés mais artístico”.
Família dentro e fora de campo
A presença de filhos das jogadoras chamou a atenção da jornalista. Enquanto as mães estavam em campo, quem esperava a vez na arquibancada pegava para si o papel de cuidar das crianças. “Pensei que elas levavam os filhos porque não tinham com quem deixar, mas a verdade é que essa é uma forma de aproveitarem o final de semana em família”, explica Priscila.
“Minha filha vai em todas, é minha torcedora mais fiel”, afirma a zagueira Andreza Ricardo dos Santos, que montou o time há dois anos – e levou um ano de muita insistência para convencer os times masculinos a darem espaço ao torneio feminino. Mais do que capitã, é uma referência em engajamento.
“Nós passamos por muitas dificuldades, por isso sempre ajudamos umas às outras, seja com dinheiro para condução ou com apoio emocional. Somos família, dentro e fora de campo”, diz Andreza.
Sororidade, que pode ser definida pela união entre mulheres baseada na empatia e no companheirismo, é a palavra usada pela jogadora Júlia Reis, de 20 anos, para definir a aliança que se forma entre os times femininos, sejam eles de várzea ou não.
“A gente passa por tanta coisa que não tem como a gente não ser unida. Voltar para casa de chuteira e shorts é motivo para ser assediada, nós lutamos o tempo todo para termos direitos iguais aos homens. No time, se uma sofre, todas vão sofrer. Quando o treino é de noite, ninguém dorme até a última chegar em casa e mandar mensagem dizendo estar segura”, conta ela, que prestou consultoria para a HQ.
Um esporte invisível
Em setembro, a jogadora Marta Silva entrou para a história como a maior vencedora da Fifa. Pela sexta vez, ergueu a taça de Melhor Jogadora do Mundo. Porém, nem mesmo sua figura vitoriosa fez com que o futebol feminino ampliasse sua força no Brasil.
Como apontou uma reportagem do Globo, só a partir de 1979 que a participação das mulheres em campo passou a ser permitida pela legislação nacional. Em comparação ao masculino, o futebol feminino brasileiro tem defasagem de tempo, número de praticantes, competições, exposições na mídia e recursos.
Isso se reflete em dificuldades de todos os tipos, para qualquer categoria de futebol feminino, dos amadores aos profissionais. Horários de reserva para treino são restritos, chuteiras feitas para o sexo feminino não existem.
“Ano que vem vai começar a Copa do Mundo Feminina. Se o Brasil ganhar, vamos ser hexa ou só vale quando o time masculino ganha? Ninguém está falando disso”, questiona Júlia, ao enfatizar que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) cuida dos times masculino e feminino. “É muito importante a gente questionar essas coisas. Assim, quem sabe daqui alguns anos os times de base possam ser mais estruturados”. Enquanto isso, é jogo que segue!
Produzido através de financiamento coletivo, a HQ Minas da Várzea foi lançada oficialmente na Comic Con de São Paulo, entre os dias 6 e 9 de dezembro, e está disponível para compra em versão impressa ou virtual pelo site da Agência Mural.