A presença da tecnologia na vida de crianças e adolescentes amplia formas de aprender, criar e participar, mas também impõe desafios para escolas, famílias e gestores públicos. Redes sociais, vídeos ultracurtos e o avanço da inteligência artificial generativa criam um cenário que exige não apenas proteção, mas também educação digital consistente e diálogo com as juventudes.
Especialistas alertam para riscos e oportunidades do ambiente digital na educação básica. À medida em que as telas se tornam parte do cotidiano, cresce a necessidade de compreender os impactos sobre saúde física, emocional e cognitiva — e de preparar a escola para assumir seu papel de formação cidadã em um mundo conectado.
Para Patrícia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta e do EducaMídia, o primeiro passo é incluir o letramento digital e midiático nas matrizes curriculares, de forma estruturada e contínua. “Educação digital e midiática não é sobre tecnologia, é sobre educação com tecnologia”, afirma. Ela lembra que marcos recentes — como o complemento de Computação da BNCC, a Política Nacional de Educação Digital (PNED) e a diretriz do Conselho Nacional de Educação (CNE) que torna obrigatória a educação digital e midiática a partir de 2026 — já oferecem base normativa para que escolas trabalhem o tema de forma sistemática.
Isso significa ir além de ensinar de ferramentas, envolve formar estudantes capazes de navegar no ambiente digital com responsabilidade, autonomia e pensamento crítico, explica Patrícia. Ela defende que o debate abandone a “lente da demonização do acesso” e reconheça que a tecnologia, quando bem integrada ao currículo, pode democratizar conhecimento e ampliar oportunidades educativas.
Essa perspectiva dialoga com documentos internacionais, como o Marco Referencial de Competências em IA para Professores, da UNESCO, que orienta educadores a compreenderem tanto o uso ético da inteligência artificial quanto suas implicações pedagógicas. Para isso, políticas públicas de formação docente precisam acompanhar essa transformação.
Riscos da hiperconexão e impactos na saúde mental
O aumento do tempo de tela acendeu alertas importantes. O médico hebiatra Felipe Fortes observa que a maior exposição digital após a pandemia de Covid-19 impactou diretamente a saúde mental de crianças e adolescentes. “De lá para cá, percebemos uma explosão de adoecimento mental e cognitivo nas infâncias e nas adolescências. Enquanto cientista, não posso deixar de fazer uma correlação com a explosão da hiperconexão”, explica.
Ele cita o fenômeno do brain rot, associado ao consumo excessivo de vídeos rápidos e repetitivos, que cria um “monotema” cognitivo e prejudica o desenvolvimento. Para Fortes, redes sociais têm dinâmicas e estímulos para os quais crianças e adolescentes não estão preparados. “Rede social não é um lugar de criança, não é um lugar de adolescente com menos de 16 anos, não é”, enfatiza.
Impactos no cotidiano escolar e familiar
A preocupação com saúde mental também aparece no guia do Ministério da Educação (MEC) sobre o uso de celulares nas escolas. O documento reforça que a hiperconexão afeta atenção, sono, convivência e o bem-estar emocional, e que a restrição dos celulares não deve ser entendida como proibição absoluta, mas como uma condição para promover o uso pedagógico e fortalecer relações presenciais.
Essa diretriz converge com a fala de Fortes, que defende um “freio de arrumação” após o período de hiperexposição digital vivido na pandemia. Ele destaca que muitas famílias se sentiram aliviadas com a regulamentação do uso de celulares nas escolas.
Para o especialista, a proteção não pode recair apenas sobre pais e professores, mas deve ser compartilhada pela sociedade e amparada por políticas públicas. O guia do MEC reforça essa visão ao indicar que a maioria dos pais apoia restrições e que o cuidado com o ambiente digital é responsabilidade coletiva — envolvendo famílias, escola, Estado e sociedade.
Regulação, equidade e o cuidado como princípio
Ao mesmo tempo, é preciso olhar para as oportunidades da tecnologia, defende a consultora de inovação e educação Giselle Santos. Ela propõe três pilares para pensar o digital na escola: currículo, cuidado e comunicação. Giselle destaca iniciativas de redes públicas — como o currículo de inteligência artificial do Piauí — e lembra que a desigualdade exige olhar atento aos contextos.
“Precisamos olhar para as pessoas e os contextos”, afirma. Ela critica a ideia de que a conectividade, isoladamente, resolverá desigualdades, e reforça que práticas pedagógicas devem considerar diversidade cultural, territorial e socioeconômica.
Essa visão reforça a necessidade de envolver crianças e adolescentes na construção de práticas digitais que considerem diversidade cultural, linguística e socioeconômica, garantindo que sejam protagonistas e não apenas consumidores de tecnologia.
Giselle alerta para a adultização e monetização da infância na internet e defende que jovens participem da construção de políticas digitais. Outra preocupação é a tendência de atribuir funções emocionais às tecnologias. “Parem de chamar tecnologia de tutor, amigo, companhia, porque não é; é máquina”, afirma.
Sobre o uso da IA, Giselle orienta que jovens façam três tipos de leitura: “de letras” (referências e checagem), “de contextos” (relevância local e impactos) e “de modelos” (vieses dos sistemas) — proposta alinhada às diretrizes da UNESCO sobre pensamento crítico e alfabetização digital.
ECA Digital: proteção, cidadania e uso responsável da tecnologia nas escolas
Oficialmente chamada de Estatuto Digital da Criança e do Adolescente, a Lei nº 15.211, aprovada em setembro, ganhou um apelido popular, ECA Digital, em referência ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 1990).
Elogiada por especialistas, a nova lei estabelece regras para proteger menores no ambiente virtual — incluindo aplicativos, jogos, plataformas e redes sociais. Surge em um contexto de atenção aos impactos da hiperconexão e complementa a lei que restringe o uso de celulares nas escolas.
Entre seus avanços, o ECA Digital reconhece a escola como agente central da cidadania digital. Determina que temas como segurança online, privacidade, proteção de dados e pensamento crítico integrem o currículo, reforçando a formação ética e responsável para crianças e adolescentes. Também incentiva a parceria entre escolas e famílias para uma orientação conjunta.
O estatuto impõe obrigações para plataformas digitais, como verificação de idade confiável, ferramentas de supervisão familiar e resposta ágil a conteúdos ilícitos. Em caso de descumprimento, prevê penalidades financeiras e suspensão de serviços.
Para o senador Flávio Arns, relator do projeto, a atualização era necessária. “Temos um documento muito importante no Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que completa 35 anos. Agora vivemos um novo contexto histórico, o digital; por isso criamos o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente”.
Arns também destaca mudanças relevantes: “Não pode haver mais perfilamento das crianças para fins comerciais. Cerca de 70% das crianças entre 9 e 14 anos já têm perfis na internet. A lei proíbe isso. Além disso, plataformas devem remover conteúdos violentos ou abusivos e denunciar às autoridades, sem necessidade de ordem judicial.”
O ECA Digital se articula com a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas (Enec), que amplia conectividade, formação docente e integração curricular da educação digital. Assim, fortalece a proteção integral e promove um ambiente pedagógico que valoriza pensamento crítico, segurança online e cidadania digital — pilares essenciais para que crianças e adolescentes participem do mundo conectado de forma ética, crítica e segura.

